DIÁLOGO E RESISTÊNCIA

O sacrifício, ontem e hoje.

O que mudou?

 

Elmano Sancho conduz-nos numa viagem pela história com olhar direcionado para os sacrifícios, os católicos, os da mitologia grega, os de todos os dias. Afinal, quem são as pessoas que se sacrificam? Desvendamos as considerações do ator e encenador neste microsite.
© Joana Linda.© Joana Linda.
© Joana Linda.

 

Nota de intenções

Na era atual da Infocracia (Byung Chul-Han/2022), a falta de ideais mina a coesão social: desaparece a empatia pelo outro e, por conseguinte, a escuta e o discurso; perde-se o sentido do coletivo e do bem comum. O sacrifício como pagamento de dívidas morais ou contributo para os interesses de um grupo deixou de fazer sentido. E, no entanto, o sacrifício não é destruição real; é a dor, a loucura, a entrega, a inquietação de que precisamos para continuarmos a acreditar que conseguimos salvar o mundo.

O sacrifício foi, desde sempre, eternizado através de estátuas erigidas em nome dos heróis e/ou vítimas de cruéis eventos históricos: o corpo real torna-se, assim, corpo representado. Os memoriais edificados materializam a emoção do intangível; imortalizam uma história que se decidiu lembrar e contar e que não pode cair no esquecimento. Recordamos o nome de alguns; os outros constituem uma massa uniforme de mortos engolidos pela magnitude de um acontecimento trágico.

As noções de memória e representatividade provocaram, recentemente, uma série de insurgências, levantando uma questão central: o que queremos lembrar através dos símbolos que habitam o espaço urbano? Que corpos e linguagens foram esquecidos e se tornaram invisíveis nas nossas cidades? Na mitologia grega, o ritual catártico, de caráter ambíguo/duvidoso, eliminava os indivíduos considerados “inferiores” para aliviar as tensões sociais da polis. Estes fundamentos psicológicos da eleição dos pharmakós chegaram aos dias de hoje, revestidos de uma aparência mais subtil, mas nem por isso menos perversa. Quais os grupos considerados responsáveis pelos problemas de uma cidade/país? 

 
Quem são os Cordeiros de Deus sacrificados nos crimes de ódio indiscriminados a que hoje assistimos? E amanhã, quem irá sucumbir ao contexto atual da crise económica e social, com a ascensão da extrema-direita, o incremento da intolerância, o aumento do fluxo de refugiados, o desastre humano/climático, as guerras europeias/mundiais?

 

O tema central do espetáculo é o sacrifício entendido como sinal de libertação. O Deus do Judaísmo-Cristianismo não quer mais o sacrifício real (Mateus 12, 7). A palavra divina interrompe a encenação sacrificial, salva o filho de Abraão, substitui-o por um cordeiro e abre caminho ao diálogo. Nesta proposta, o sacrifício não é sinónimo de violência indiscriminada/reprovável, mas o meio para reafirmar o diálogo.

O espetáculo - ficção distópica e (pós) apocalíptica - tem como ponto de partida o relatório Pilecki. Witold Pilecki entregou-se às SS, voluntariamente,

com o intuito de criar uma organização clandestina de resistência em Auschwitz e para redigir um documento: o único relatório existente sobre os primeiros anos nos campos de concentração que daria a conhecer ao mundo o terror da Shoah.

Este sacrifício, que deve ser contextualizado - hoje, Pilecki poderia não atuar de igual modo ("Vamos morrer pelas ideias, sim, mas de morte lenta" Georges Brassens) -, é o mote para lançar as premissas de uma obra sobre a resistência, que se apoia em artistas como David Wojnarowicz, Nan Goldin, Francis Bacon, Angelica Liddell, Pier Paolo Pasolini, o historiador René Girard ("A Violência e o Sagrado") e a filósofa Anne Dufoumantelle, mas, também, na história das gerações perdidas, bem como no estudo da simbologia, léxico e meios de luta que surgiram contra a inércia política: genocídio, triângulo rosa invertido (depois apropriado pela Act Up), artivismo-graffiti, linguagem audiovisual/publicitária, logo/lema, memorial, vala comum, testemunho real, cântico/oferenda/totem. Alguns rituais simbolizam o que se poderá entender como sacrifício "total": todas as quintas-feiras, às 15h30, desde 1977, as Mães de Maio manifestam-se na praça de maio pelos filhos desaparecidos durante a ditadura militar da Argentina.

 

Mas, afinal, quem são as pessoas que se sacrificam? Sacrificam-se de forma voluntária ou são forçadas? E o que significa o Sacrifício, hoje, na sociedade individualista da perversão, ancorada na falsa ideologia de segurança e na ausência de comunidade?

 

A estrutura do texto é composta por dez quadros que retratam um determinado período da história. Cada quadro representa uma conversa, silenciosa, com figuras reais ou imaginárias: Witold Pilecki (Segunda Guerra Mundial); Hebe de Bonafini (Mães de Maio); David Wojnarowizc (Epidemia do VIH/SIDA); Gaël Faye e Beata Umubyeyi Mairesse (Genicídio do Ruanda); Susan Sontag (11 de setembro de 2001); Laurent Gaudé (Atentados de Paris de 2015); Delphine Horvilleur (Conflito Israelo-Palestiniano) e Deus (atualidade).

O vaivém entre o íntimo e o universal, a seriedade e o humor, a esperança e o desespero, a dúvida e o conhecimento, o desconforto e a incerteza, pauta a história que, aqui e agora, se procura contar: a da defesa incessante da democracia e da liberdade, ontem, hoje e amanhã.

Elmano Sancho

Elmano Sancho

Bilingue em Português/Francês e fluente em Espanhol e Inglês. Tem o curso de Formação de Atores da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC). Estudou em Madrid (Real Escuela Superior de Arte Dramático - RESAD), São Paulo/Brasil (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo- ECA/USP), Paris (Conservatoire National Supérieur d´Art Dramatique de Paris - CNSAD) e NY (Saratoga International Theater Institute – SITI COMPANY/Anne Bogart)
Estreou-se como encenador em 2014, com o espetáculo Misterman, de Enda Walsh e com o qual recebeu o prémio de melhor ator da Sociedade Portuguesa de Autores. Em 2015, encenou o seu segundo espetáculo, ICan´t Breathe, no Festival Temps d´Images, com o qual recebeu a menção especial do prémio da crítica da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro (APCT).
No cinema e na televisão, trabalhou com Keren Ben Rafael, Odile Brook, Jorge Paixão da Costa, Jorge Queiroga, Hugo Diogo, Solveig Nordlund, Valéria Sarmiento, Jérome Cornuau, Benoît Jacquot, Sérgio Graciano, José António Loureiro, Yuri Alves, Francisco Manso, Vicente Alves do Ó, Marco Pontecorvo, Marie Brand, João Cayatte, Alessio Maria Federici, Mónica Santos, Juan Carlos Fresnadillo, João Maia, Rita Nunes, Fernando Vendrell, Patrícia Sequeira, Cristèle Alves Meira, entre outros.
FICHA TÉCNICA

FOTOGRAFIA
Sofia Berberan, Joana Linda

TEXTO
Elmano Sancho

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina, Helena César

EDIÇÃO
Carolina Luz

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo