Com Ion, somos convidados a observar o modo como os cardumes de peixe usam exactamente o mesmo movimento que os bandos de pássaros, para se coordenarem. Christos Papadopoulos, que assistiu a imensos documentários sobre vida selvagem, assegura-nos que, ao contrário do que se costuma acreditar, não avançam todos juntos. É verdade que alguns seguem e são seguidos, mas também há resistência e há erros. Neste lugar, no meio de outras espécies, temos tudo o que forma uma sociedade, e que nos permite tomar decisões em contextos, momentos e lugares específicos. No mundo natural, encontramos exemplos de coexistência, maneiras de estar juntos que funcionam.
Não é só sobre bandos de pássaros, é também sobre o comportamento social e sobre uma estrutura sobre as nossas cabeças. O grande desafio que se apresentou foi recriar, com dez bailarinos, uma dinâmica de multidão que viabilize que a qualquer momento seja possível dizer sim, optando pelo movimento, ou dizer não. Movendo-se na mesma direcção, os bailarinos podem escolher o seu lugar e desenhar o seu próprio caminho. A repetição, para além de ter um efeito hipnótico, permite que essas opções, e essa liberdade, coexistam num todo coerente.
De certo modo, os movimentos de uma multidão, a forma como comunicamos internamente ou como nos coordenamos entre nós, dá-nos um melhor entendimento do espírito individual.
Ion é alimentado por estes contrastes, esta tensão que poderia ser uma história feita de braços e mãos em vez de palavras. Poderíamos falar de um esboço no palco, sem guarda-roupa, sem efeitos de iluminação excessivos: tudo nos chama de volta aos corpos, ao ritmo do voo dos pássaros.
O modo como os actores se movem, como se não tocassem o chão, faz com que Ion finalmente nos leva a um suspense profundo e alegre. O paradoxo da liberdade possível, sobre as nossas cabeças.
Henri Guette, TRANSFUGE