O que é a Matéria Incomum?
Lucinda Correia e Marta Rema
Do momento em que existam dois seres em relação no espaço, existe matéria incomum.
A matéria incomum exprime-se na materialidade, materializa-se no espaço. Trata-se, numa perspetiva, de um inconsciente tornado consciente através da ação. Não sabemos o que é. Não conhecemos exatamente os seus contornos. Contudo, a ação transformadora é a expressão de uma relação com a matéria incomum, como é, essencialmente, decorrente da sua apreensão. «A verdadeira condição do homem é a de pensar com as suas mãos», diz Jean-Luc Godard nas Histoires du Cinéma, e talvez hoje mais do que nunca seja importante lembrarmo-nos disso.
Poderemos também dizer da matéria incomum que ela é o que nos une, não o que nos separa. A ação que desenvolvemos a partir dessa imaterialidade unificadora irá, então, delimitar contornos, como irá distinguir-nos e dividir-nos. É incomum pois não lhe chamamos matéria. Na realidade, a matéria incomum é imaterial e etérea. O projeto Matéria Incomum é uma viagem, uma abertura lúcida a essa região de abstração, invisibilidade, entre pensável e impensável.
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Estar em contacto com a matéria incomum é ampliar o horizonte do pensável. Mas qual é a relação do pensamento com a matéria incomum? Transformamos o impensável em pensável através da atenção, do cuidado, da dedicação, do trabalho e transformamos de maneira diversa consoante agimos com mais generosidade, de forma inclusiva ou segregadora. O mundo não precisa de nós para existir. Todavia, a nossa ação transforma-o. Que sentidos podem ser construídos no mundo? De que modo cada um de nós pode participar nessa construção? Que tipo de agência queremos — e podemos — ter? As estruturas da matéria incomum caracterizam-nos mesmo quando falham em definir-nos. São conceitos autónomos que têm de ser reformulados, pois o sentido do que estamos a criar é inumano, destrutivo.
A questão do ambiente é uma questão relacional que coloca em causa a nossa responsabilidade, que nos impele a tomarmos consciência das invisibilidades de maneira a trazê-las para o centro. A relação com o fora e com o outro tem de ser vivida nesta abertura.
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Numa época em que se instala um dualismo que induz a considerar em separado a natureza e o homem (ou a sociedade), as causas físicas e as causas morais, Montesquieu encontra, na teoria dos climas, o «espaço comum» onde considerar a ação conjunta, e de modo algum separada, das causas físicas e das causas morais. O clima, na sua dimensão geográfica, tem esta capacidade integradora que nos permite pensar em conjunto, sem distinção a priori, o físico e o moral, ou, como diríamos hoje, o natural e o cultural, quer se trate de seres, de objetos ou de processos.
Montesquieu et l’espace, Catherine Larrère
EM DISCURSO DIRETO
"A justiça não é heróica, não é masculina, não é binária, nem sequer é humana."
“Não se trata apenas de tijolos e de argamassa; trata-se de pessoas, comunidades e da forma como vivemos juntos.”
A duração em que nos vemos agir, e em que é útil que nos vejamos, é uma duração cujos elementos se dissociam e se justapõem; mas a duração em que agimos é uma duração na qual nossos estudos se fundem uns nos outros, e é lá que devemos fazer um esforço para nos colocar pelo pensamento no caso excecional e único em que especulamos sobre a natureza íntima da ação, ou seja, na teoria da liberdade.
Matéria e Memória, Henri Bergson
+ Keep Reading(...) o espaço é de facto o símbolo da fixidez e da divisibilidade ao infinito. A extensão concreta, ou seja, a diversidade das qualidades sensíveis, não está nele; é ele que colocamos nela. O espaço não é o suporte sobre o qual o movimento real se põe; é o movimento real, ao contrário, que o põe abaixo de si. Mas a nossa imaginação, preocupada antes de tudo com a comodidade de expressão e com as exigências da vida material, prefere inverter a ordem natural dos termos.
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"Enquanto as nossas mentes se moveram em direção a um lugar idealizado e metafórico, os nossos corpos desenharam movimentos assimétricos e abstratos, distraíram-se, e autorizaram lugares alienantes."
"A relação entre a crise climática e a violência infligida a vários corpos e paisagens humanos e não humanos pode ser melhor descrita através do termo apartheid climático."
A relação impensada com a existência material, incorporada na descartabilidade do plástico, caracteriza esta era descuidada de desertos em expansão e outros sinais de que a terra virou as costas em resposta à devastação do capital racial.
A natureza sintética ou «artificial» de algo, sugere a forma como se desenvolve, emerge ou é criado, independentemente do ambiente que o rodeia. Os plásticos incorporam este pressuposto filosófico de um universal neutro ao qual toda a matéria pode aderir, em vez de tudo emergir numa relação dinâmica com o que o rodeia. Os sintéticos negam ativamente as relações em que estão inseridos.
Plastic Matter, Heather Davies
"É necessário falar a sua própria linguagem. Isto é um problema político."
A despolitização tem uma importância específica para a ética ecológica, onde o impacto da agência individual (por exemplo, «vida ecológica») é frequentemente considerado insuficiente no que diz respeito às políticas coletivas de grande escala e às transformações eco-sociais radicais necessárias para enfrentar os desafios ambientais contemporâneos (como as alterações climáticas).
(...) para que se tornem possíveis ecologias afetivas mais cuidadosas, precisamos de pensamento especulativo e de uma boa dose de fabulação, para que as ansiedades que a atribuição de modos humanos de intencionalidade a não-humanos gera nos pensadores críticos não paralisem a nossa imaginação ética.
Matters of Care, Maria Puig de La Bellacasa
+ Keep ReadingTenho estado a tentar aumentar o volume da vitalidade da materialidade per se e nessa tarefa, tenho estado centrada nos corpos não-humanos, ou seja, descrevendo-os como participantes ativos [actantes] e não como objetos. Mas para defender a matéria como ativa é preciso também reajustar o estatuto dos participantes ativos [actantes] humanos: não negando os poderes espantosos e terríveis da humanidade, mas apresentando esses poderes como prova da nossa própria constituição como materialidade vital. Por outras palavras, o poder humano é, ele próprio, uma espécie de coisa-poder.
Vibrant Matter: A Political Ecology of Things, Jane Bennett
Se o ato de rastrear materiais e mercadorias conduz às pessoas, também conduz inevitavelmente à terra. O rastreio da madeira, da pedra, do ferro e dos polímeros conduz às comunidades florestais, aos depósitos sedimentares, às camadas ricas em ferro e aos leitos de combustíveis fósseis. O rastreio dos materiais até à terra pode revelar como certas propriedades (a durabilidade de certa madeira ou o brilho de uma pedra, por exemplo) não são meramente atributos «úteis», mas como estão fisicamente relacionadas com condições biofísicas locais únicas. É fácil ver as paisagens como «recursos naturais», reservas permanentes de materiais prontos a serem utilizados, mas é claro que são mais do que isso. São ecossistemas complexos que suportam muitos seres interligados; são a base física do sustento humano e da cultura local.
Uma vez que os materiais paisagísticos não são nem claramente naturais nem feitos pelo homem, pensar sobre eles pode quebrar binários inúteis. Os materiais mudam de forma à medida que entram e saem dos sistemas controlados pelo homem, desafiando-nos a pensar neles como sendo formados através da ação humana e também como tendo vida própria. Se os materiais não são apenas para uso humano, como é que os podemos considerar fora de uma perspetiva puramente instrumental? Se pudéssemos ver a matéria como tendo agência, como poderia isso afetar a forma como trabalhamos com ela, construímos com ela e vivemos.
Reciprocal Landscapes, Jane Hutton
- ResumeSobre os participantes
Angelika Hinterbrandner
Trabalha com diversos formatos e colaborações dentro e fora do campo da arquitetura. É professora na ETH Zurich, no Laboratório de Património Arquitetónico e Sustentabilidade e investiga o quadro político e legislativo da financeirização da habitação e as implicações da crise climática no ambiente construído. Pertence ao grupo interdisciplinar que criou o spaceforfuture.org.
Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos
Investigador, artista e escritor. Participou em duas Bienais de Veneza (2019, 2016) e em intervenções em várias instituições e tem participado em exposições em várias galerias e museus. É professor de Direito e Teoria na Universidade de Westminster e fundador e diretor do The Westminster Law & Theory Lab. The Book of Water, é o seu primeiro livro de ficção.
Sepideh Karami
Arquiteta, escritora e investigadora com doutoramento em Arquitetura e Estudos Críticos (KTH, Suécia). É professora de Arquitetura na Universidade de Edimburgo, Escola de Arquitetura e Arquitetura Paisagista (ESALA). A sua investigação artística trabalha métodos experimentais e abordagens interdisciplinares na intersecção da arquitetura, artes performativas, literatura e geologia, com o ethos da descolonização, política menor e criticidade a partir do interior.
Lucinda Correia
Arquiteta (FA-UTL), investigadora e pós-graduada em Culturas e Discursos Emergentes: da Crítica às Expressões Artísticas (FCSH/UNL). É fundadora da efabula e cofundou Artéria — Humanizing Architecture (2011-19) onde coautorou, entre outros, o Edifício Manifesto e a Rua das Gaivotas 6. A convite do MAAT, foi curadora do projeto Contra-Arquitetura (2020-22). Criou o podcast Territórios da Transgressão (2021-22). Desenvolve atualmente a tese de doutoramento A (Incerteza da Norma. A Invenção da Arquitectura pela Lei.
Marta Rema
Curadora, programadora e coordenadora editorial (revista Electra). Responsável pela área de Projetos Curatoriais na efabula desde a sua fundação, criou os programas muitas vezes marquei encontro comigo próprio no ponto zero (Prémio Atelier-Museu Júlio Pomar, 2018), As coisas fundadas no silêncio (2020) e Atlas da Solidão (2023). Com formação em Filosofia e em Estudos Curatoriais, nos últimos anos tem vindo a trabalhar sobre sistemas de resistência e a investigar sobre como o silêncio, a solidão e a linguagem se encontram no núcleo desses dispositivos.