MEMÓRIA E LIBERDADE

A imagem da nova temporada
Set - Jan 2024/2025

Nesta temporada, fomos até à praia: lugar de liberdade, serenidade e resistência. Uma imagem de verão em plena temporada de inverno que ecoa resiliência. Na Foz do Arelho, em Peniche e no Baleal encontramos o mar e a memória através do olhar de Renato Cruz Santos. Nesta mesma paisagem, há 52 anos, durante o Estado Novo, a Cruz Vermelha Internacional organizava uma colónia de férias para filhos de presos políticos, onde crianças, marcadas pela clandestinidade e solidão, aprenderam a brincar em liberdade.
© Renato Cruz Santos
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Renato Cruz Santos sobre a imagem da nova temporada

 
"Uma sequência de verões de um grupo de crianças que acendiam fogueiras à noite, imaginando aqueles de quem estavam distantes, ali bem perto deles a cantar canções que sabiam de cor. Estavam deslocados, numa colónia de férias algures entre o Baleal, Foz do Arelho, Caldas da Rainha. A premissa era algo deste género.

Não me é distante esta coisa da ausência do pai nem tão pouco o refúgio na praia. Nas Caxinas, o sítio onde cresci, a ausência acontece através de uma embarcação que vai e que vem, se vier. Quando cai a noite, o mar ruge porta a dentro e da janela, para ele virada, só o vermelho e verde dos farolins nos esporões.

Todos os dias, o iodo e a vitamina D estão em máximos históricos. O cabelo esvoaça e o corpo ensalitrado não pára. A sola do pé é negra e sei que, desde de manhã, tenho um balde de água que aqueceu ao sol, antes de entrar em casa, para lavá-los e tirar a areia. No final do dia, o banho é de mangueira também aquecida pelos raios da nossa estrela mor. O imaginário de um grupo de miúdos à solta está criado e é rico. Cachafundos mil até a beiça virar roxa, avermelhadas estão as virilhas de roçar na areia grossa e a tez quase chisnada de três curtos meses consecutivos só de calções.

 

Isto seria o ideal. Sol, ondas, crianças em grupo, ocupadas e, sobretudo, com tempo para estar.

 

Ainda faltavam três semanas para começar a fotografar quando comecei a tratar das reservas. Neste ponto, não sabia o que esperar nem o que iria encontrar. É claro que não posso confiar nas previsões meteorológicas com tanta antecedência. Que tontice. Mas permito-me entrar em devaneios, é claro. Baleal, Peniche, Lourinhã. Dinossauros, fósseis, o tempo geológico. Estas coisas encantam as crianças. Um encanto que se mantém dentro de muitos que chegam à maioridade. Se as coisas dessem para o torto, fixar-me-ia nos olhos desses garotos, em busca, em vez de ser voyeur e colocar os meus olhos neles. Era o plano b.

Fiz a viagem durante a noite, para acordar cedo e pronto a trabalhar. Despertei, e o tempo não estava como imaginei. As nuvens eram baixas, a aragem era fresca, e o mar era prata. Segunda-feira. Fui ver o Forte de Peniche, onde se situa o Museu Nacional Resistência e Liberdade, peça fundamental nesta história mas, claro, os museus fecham à segunda. Fugi para a praia, antecipei-me através da beachcam que me revelou algum movimento. Ainda distante, desde o passadiço, no meio das dunas, fitei um grupo de rapazes que pelos braços cruzados e os passos pequenos como os de um passarinho, estavam com pouca vontade de mergulhar numa água que apontava uns 16 graus, à superfície. Nada como a motivação do grupo para fazer acontecer. Concentrei-me neles e fiz a imagem dos painéis. Não tive muito tempo. Se eu, fora de água e mal preparado para aquele vento já estava ligeiramente desconfortável quanto mais os miúdos. Estava ansioso. O trabalho estava a ser feito em contra-relógio. O céu estava tapado. A cabeça não parava.

Então se o tempo está assim, ia eu ficar na praia à espera que algo acontecesse? Tinha dois dias. Resguardei-me e planeei o dia seguinte.

Foz do Arelho? Nunca tinha lá ido e acho que já não me vou esquecer. O céu estava azul, pincelado de cirrus. Fui para o miradouro, a norte da foz. Carro estacionado, fui ver a paisagem picada. O sol estava pouco oblíquo para o meu gosto. Queria que o sol, que refletia nas ondas espumosas do mar ressacado, lucilasse dourado. Voltei ao miradouro para aguardar talvez meia hora, quarenta e cinco minutos. Acabou por esticar para noventa minutos. Uma marcha atrás incauta deu cabo do meu para-choques. Tudo resolvido e a fotografia - que se tornaria a protagonista da fachada da Culturgest - estava feita. Um plano fechado, à distância, em de cima de uma falésia junto aos chorões num terreno semi baldio que dava pistas de antigo canavial.

Ali, na Foz do Arelho, umas semanas antes, tinha andado um tubarão azul, tintureira como é conhecida popularmente. Estava desorientado. Tal como eu, que é assim que, quando tenho tempo, gosto de estar. Objetivo cumprido. A fotografia estava feita, o O sol continuava a baixar e não há coisa mais bela do que tropeçar nas imagens sem ideia do trilho. Nesse sentido, segui pelo caminho que seria o mais longo, mais demorado e que me levaria a Óbidos, a um topónimo homónimo - Caxinas.

Flamingos, garças-reais, garajaus, patos reais, ostraceiros. Ali, a peneirar na luz dourada, na maré baixa. Uma memória idílica que também não vou esquecer.

Chega o último dia. Já com muitos quilómetros de asfalto percorrido, para-choques partido, mas ainda não tinha visto nenhum fóssil. Rumei a sul, até à zona da Lourinhã, para visitar um local de um filme que tinha marcado no maps com um coraçãozinho cor-de-rosa. Uma Pedra do Bolso, de Joaquim Pinto. Recheado de planos contemplativos, a película acompanha também o Verão de um rapaz que vai passar as suas férias para a estalagem dos tios. O acesso é feito a pé por um caminho de terra batida onde as falésias, preenchidas de espécimes jurássicos, estão sinalizadas com perigo de derrocada. A estalagem não era aquilo que vi no filme. Na verdade, já estava à espera, Portugal. Estava abandonada, faz anos, e é certamente um edifício polémico dadas as mensagens que adornavam aquelas paredes descascadas da maresia, através de lonas ou pichagens. Ainda trouxe duas fotografias e vi uns belemnites. A naturalidade e o êxtase da observação, da descoberta fez-me esquecer do tempo. O meu espírito era, em parte, como o das crianças das colónias, à descoberta, encontram a novidade atrás de um portão, numa poça, por debaixo de uma rocha. Voltei a Peniche, a uma praia que nem era uma praia, onde as flores eram alhos-porros, hirtos como estátuas ao sol. Eu queria continuar a ver de perto. Isolado, em cantos desconhecidos, um metro quadrado é infinito. De lá, trouxe um punhado de imagens distintas, vistas pelos olhos entusiasmados de quem pousa os pés num território que há 200 milhões de anos estava coberto de água, por onde terão passado os maiores animais da história do nosso planeta. Essas e outras imagens irão aparecer, a seu tempo, também. Imagens sem tempo, datadas apenas pela tecnologia que as capturou.

 

O sol baixava e o ponteiro do relógio seguia.

 

No Baleal, terminei o trabalho em frente a uma parede que tinha várias palmeiras pintadas. Ou seriam arbustos? Suculentas talvez. Talvez aloé vera. Talvez faça sentido. Quem me bateu no carro disse que tinha ido até aquele topo para apanhar aloé vera. Não sei. O sol pôs-se. Encontrei uma barbatana numa rocha isolada. Vi uns ex-castelos de areia destronados. O mar estava mais calmo, mas o vento húmido fazia doer os ouvidos. Meti o carapuço, fui para o carro. Estava terminado. Bebi uma coca-cola e jantei sushi."

 

Renato Cruz Santos é um artista multidisciplinar natural das Caxinas, norte de Portugal, e explora maioritariamente as temáticas da memória, do imaginário ficcionado e da desconstrução do real. Grande parte do seu trabalho é produzido na sua terra natal onde tem vários projetos em desenvolvimento. Trabalha ativamente em várias vertentes de fotografia como jornalismo, música, teatro, dança, cinema - dividindo-se maioritariamente entre o Porto e Lisboa.

© Renato Cruz Santos
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© Renato Cruz Santos
© Renato Cruz Santos
FICHA TÉCNICA

FOTOGRAFIA, TEXTO
Renato Cruz Santos

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina, Helena César

EDIÇÃO
Carolina Luz

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo