JOANA BRAGA EM DISCURSO DIRETO
Encontro primeiro com a matéria tangível que constitui a Quinta do Pisão: com a sua topografia, com o solo feito de terra onde afloram rochas, sobretudo calcários, alguns granitos a norte, e cristas de calcoxistos (pedra que não conhecia até agora). Percorrer os caminhos e trilhos que estruturam este lugar, as poucas construções que o pontuam, o encontro com os viventes não humanos que o habitam: as formas de vida vegetal que o povoam e moldam, os animais para quem este lugar é casa, habitat, outros que apenas por ali passam. Caminhar sem rumo planeado, perder as horas, as referências espaciais, demorar-me, afinar o corpo com o lugar.
Talvez o encantamento com o que nos rodeia, a escuta do que está próximo e ainda assim é desconhecido, possa ser o princípio de um mergulho no mundo que forçosamente nos liga a todas as formas de existência, viventes e não viventes, que connosco compõem o mundo.
O movimento do corpo no acto de caminhar, ao propor uma recriação da atenção e o seu entrelaçamento com os pormenores sensíveis do meio que percorremos, ou melhor, do meio em que estamos imersas, torna-se modo de pesquisa do lugar.
A experiência corporizada da caminhada também convoca a interrogação arqueológica, permitindo desvelar, na matéria tangível de cada lugar, indícios de configurações, temporalidades e modos de vida erodidos, ou a revelação de fracturas e tensões que o atravessam.
Contudo, este mergulho na Quinta do Pisão, talvez por me faltarem referências incorporadas, parecia não me permitir escutar os estratos latentes. Era necessário escavar o que não está imediatamente visível para poder escutar a sedimentação das camadas temporais que constituem a sua história.
Primeira visita ao Centro de Apoio Social do Pisão para uma conversa com a Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, Isabel Miguéns de Almeida Bouças e com a directora do Centro, Anabela Gomes.
As palavras que escutei contam uma história de violência terrível inscrita neste lugar: pessoas enclausuradas em condições miseráveis, pessoas que trabalharam os campos da quinta sob a ameaça das espingardas dos polícias que as vigiavam, pessoas referenciadas com problemas de saúde mental encerradas num pavilhão isolado sem qualquer tipo de cuidado ou tratamento e que «levavam tanta pancada», pessoas que passaram fome.
Foram estas pessoas que delinearam parte dos caminhos que percorri, que cultivaram as zonas que hoje são pastagens, que construíram parte do seu edificado. Quando estou perante estes pastos ondulantes, onde agora passeiam os cavalos, não consigo já deixar de ver a imagem dos doze homens com enxadas na mão, costas curvadas, sob o olhar atento do polícia, tal qual a fotografia dos anos 1940 que me foi mostrada.
FICHA TÉCNICA
FOTOGRAFIA
Joana Braga, Raquel Montez
VÍDEO, TEXTO, ÁUDIO
Joana Braga
EDIÇÃO DE CONTEÚDOS
Joana Braga, Sara Morais
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina
DESIGN E WEBSITE
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