No âmbito do empréstimo da obra Espelho de Ismael (ou Quadro de quarto para janela sem muro) [série Moby Dick], (1975) de Mário Cesariny (Lisboa, Portugal, 1923 – 2006) destaca-se esta obra pertencente à Coleção da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que integra a exposição O Castelo Surrealista de Mário Cesariny, com curadoria de João Pinharanda, Afonso Dias Ramos e Marlene Oliveira, no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, de 5 de outubro de 2023 a 4 de março de 2024.
Desde cedo que a obra de Cesariny marcou o panorama artístico português. Entre 1936 e 1943, frequenta a Escola António Arroio, onde conheceu os que viriam a ser os seus companheiros do Surrealismo em Portugal, nomeadamente, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom e Marcelino Vespeira, entre outros artistas da sua geração. Em 1947, viaja para Paris e frequenta a Académie de la Grande Chaumiére. Em Paris contacta com André Breton, entre outros artistas surrealistas, e ao regressar a Lisboa funda o Grupo Surrealista de Lisboa conjuntamente com António Pedro, José Augusto França, Cândido Costa Pinto, João Moniz Pereira e Alexandre O’Neill. Reunidos na Pastelaria Mexicana, o grupo surgiu tanto como protesto contra o movimento Neo-Realista, controlado pela ideologia do Partido Comunista Português, como do mesmo modo opunha-se ao regime do Estado Novo. Mais tarde Cesariny funda o grupo dissidente Os Surrealistas com António Maria Lisboa, Risques Pereira e Mário-Henrique Leiria, entre outros.
A partir da década de 50, Cesariny é vigiado pela Polícia Judiciária, e obrigado a interrogatórios regulares às autoridades, devido à sua homossexualidade assumida. Este dado biográfico é relevante porque vai-se refletir na sua obra, através da representação da figura do marinheiro como desejo homoerótico, sobretudo, na influência literária do Moby Dick (1851), de Herman Melville. A pintura “Espelho de Ismael” (1975), desta série, apresenta planos abstratos que evidenciam formas lânguidas e texturas sensíveis. Nas pequenas aproximações orgânicas pode sentir-se a transformação das diversas camadas de tinta em modulações marítimas, também presentes nas cores utilizadas. Ismael, num sentido bíblico, representa os ostracizados, os órfãos e os exilados, os que não têm família, e neste sentido, considerando as premissas familiares heterocêntricas vivenciadas na época pelo artista, estamos perante uma pintura sofrida e em tensão, entre as ondas e a baleia que restringem o indivíduo e os planos gestuais e texturados que o libertam.
Em 1964, Cesariny recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para escrever o livro Vieira da Silva / Arpad Szenes ou o Castelo Surrealista, publicado em 1984. Em 2004, Miguel Gonçalves Mendes realizou o documentário Autografia onde, em discurso direto, Cesariny revela a sua intensa vida privada. Destaca-se também a sua extensa e importante obra literária, tanto na poesia como em ensaios e ficção.
Hugo Dinis
102,2 x 170 cm
Inv. 275511