No âmbito do empréstimo da pintura Mortecor (1993) de Ricardo Cruz-Filipe (Lisboa, Portugal, 1934) destaca-se esta obra pertencente à Coleção da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que integra a exposição Modo de ver, com curadoria de Ana Vasconcelos na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, de 23 de fevereiro a 15 de abril de 2024.
Cruz-Filipe formou-se em Engenharia Civil pelo Instituto Superior Técnico, em Lisboa, onde viria a ser professor entre 1958 e 1968. Desde 1955, dedica-se como artista autodidata à pintura. Realiza a sua primeira exposição individual na Galeria Pórtico, Lisboa, em 1957. Em 1996 a Fundação de Serralves organiza a exposição retrospetiva Quarenta anos de pintura. Nesse ano, é galardoado com o prémio AICA e em 2003 com o Banif – Pintura. Em 2007 o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian organiza uma exposição individual com curadoria de João Pinharanda.
As suas pinturas desenvolvem-se através da figuração e sobre o questionamento da natureza das imagens reais. Por um lado, a investigação técnica, em torno dos suportes e das superfícies pictóricas, expandiu-se para o campo da fotografia e da reprodução da realidade. E por outro lado, a representação é habitada por silhuetas ou fragmentos em composições enigmáticas que revelam narrativas de carácter surrealista e simbólico. Neste sentido, as suas obras exploram as ambiguidades conceptuais da pintura e o modo como esta se apresenta. A pintura Mortecor (1993) é um bom exemplo desta dupla premissa que acompanha a sua obra: técnica e conceito. Morte-cor, que o título da pintura parafrasia, trata-se do conjunto das primeiras camadas de cor ténue que se aplica nas pinturas. Cruz-Filipe inverte esta técnica ao utilizar cores escuras sobre a fotografia, que ambiguamente, desvelam e ocultam uma figura humana representada pelas suas mãos que emergem de um fundo denso e contrastante com o panejamento branco do primeiro plano. Deste modo, a relação entre fotografia e pintura torna-se dúbia e dramatiza uma imaginação inquietante nos diversos pontos de vista que a imagem emana.
Salientam-se algumas citações que adensam a pertinência a obra de Ricardo Cruz-Filipe: “A pintura sentiu a necessidade de encontrar nessas artes substitutas aldo dessa sua essência perdida.” (Jorge Molder); “Tradição e mudança estão presentes em toda a obra de Cruz-Filipe através de uma troca de estatutos entre pintura e fotografia, entre imagem unitária e colagem.” (João Lima Pinharanda); “A específica marcha pictural moderna obedece à fascinação do não-pictural.” (Eduardo Lourenço); “O pintor é aquele cuja face invisível emerge do sudário que é a pintura.” (Ana Hatherly); “Olhar do olhar, imagem de imagens — sendo que a imagem é sempre o privilegiado lugar em que se projecta a ausência.” (Bernardo Pinto de Almeida); “Cruz-Filipe introduziu uma infinita continuidade entre a impressão fotográfica e a pintura para articular composição e fotomontagem e reconhecer nos gestos quotidianos uma antiga linguagem.” (Pedro Lapa); “É preciso conhecer dos momentos efémeros a sua eternidade velada.” (Rui Mário Gonçalves); “Aqui, a fotografia não age como vector discontínuo, integra-se em leituras de continuidade plástica ou narrativa.” (Fernando Pernes); “Ganhando neste nosso tempo uma consciência de que tudo dizer é não dizer tudo.” (Fernando de Azevedo); “Tudo se torna assim lugar disponível para a passagem das figuras e das cifras do mundo, ou para um efémero de ausências, exercício diferente das artes da memória e puzzle da quotidiana contiguidade que pretendemos ou fingimos, ter com elas.” (Vasco Graça Moura); “Pintura fora do tempo? Como, se ela tem esse poder de nos reenviar à opacidade indestrutível da nossa aventura e à sua espessura temporal?” (Eduardo Lourenço).
Hugo Dinis
104 x 84,5 cm
Inv. 275511