No âmbito do empréstimo do desenho Sem título de Ana Hatherly destaca-se esta obra pertencente à Coleção da Caixa Geral de Depósitos (CGD), que integra a exposição “El poder con que saltamos juntas. Mujeres artistas en España y Portugal entre la dictadura y la democracia”, com curadoria de Giulia Lamoni e Patricia Mayayo, no IVAM – Institut Valencià d’Art Modern, em Valência, Espanha, entre 16 de maio a 29 de setembro de 2024.
As relações entre literatura, nomeadamente, através da poesia concreta e experimental e das artes plásticas, fizeram da obra de Hatherly uma das mais multifacetadas e, simultaneamente, coesas propostas de arte contemporânea portuguesa. A escrita e as potencialidades visuais da palavra excedem as fronteiras do desenho e da pintura, que se tornam mais promissoras nas suas capacidades e transgressoras dos seus limites. Neste sentido, a liberdade do gesto, e das ações por ele compreendidas, torna-se pensamento no modo como as imagens produzidas atingem os seus leitores: “A mão inteligente era a mão sensível e a mão conceptual de quem inventava os corpos dos desenhos como uma escrita e, sobre os seus mecanismos, compondo mundos metafóricos: exactamente para lá da forma e para lá dos sentidos, que nos tranquilizam e nos inquietam.” (Raquel Henriques da Silva). O desenho Sem título (1970), que faz parte da Coleção da CGD, descende desta relação entre a caligrafia e a imagem produzida. De facto, não são desenhos de palavras nem de letras, mas sim de signos similares, “porque é o próprio gesto de apagar, único «resto» da operação” (Manuel Castro Caldas), que no seu conjunto formam uma possível paisagem e um espaço de pensamento livre. Este transvazar das disciplinas artísticas também se vislumbra nos vídeos-poemas dos cartazes políticos arrancados às paredes após a revolução democrática a 25 de Abril de 1974, que são colados, sobrepostos, rasgados, transformando a mensagem revolucionária: “As próprias palavras exigem a liberdade que na rua se gritava: libertando-se o significante do jugo do significado. Autonomizando-se.” (Paulo Pires do Vale)
Poeta de vanguarda, Hatherly desenvolveu a sua atividade artística também na ficção e ensaio, bem como no cinema e nas artes plásticas. Nascida no Porto em 1929, estudou Cinema na London Film School, em Inglaterra, onde passou prolongadas temporadas. Foi professora na Escola de Cinema do Conservatório Nacional e no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, ambos em Lisboa. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorou-se em Estudos Hispânicos pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos da América. Investigadora e divulgadora da cultura portuguesa do período barroco, foi professora Catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou e dirigiu o Instituto de Estudos Portugueses. Desde os anos 60, foi membro destacado do grupo de Poesia Experimental Portuguesa. Faleceu em Lisboa, em 2015, aos 86 anos.
Hugo Dinis