Para este microsite desafiámos Renato Cruz Santos, artista multidisciplinar e entendedor de mil assuntos marinhos, a escrever sobre Jean Painlevé e a sua obra.
A nosso convite, mergulhou no universo do pioneiro documentarista e fotógrafo da vida animal e da fauna subaquática.
‘Tio, sabes quando estás cansado e sais de um lugar e a cabeça não consegue parar?'
disse-me a minha sobrinha depois de sair da faculdade, após um exame. Claro que sei o que é essa sensação. Tantas vezes estou a pensar tanto que nem consigo pensar. Outras tantas vezes, acho que me bastaria chegar à beira-mar ou ao souto para desligar completamente. Já não bastava ter de ir longe e ainda tenho de dar tempo para conseguir sossegar? É a correria que cria a barreira que me impede de atingir a abstração. A abstração dos estímulos que, neste momento, não me rodeiam. É que agora estou noutro lugar. É de noite. Estou no litoral, na praia, num penedo que fica atrás de outro penedo, com os pés dentro de uma poça, a olhar para uma toca, com a lanterna apontada para a água diáfana que, se não fosse pela humidade e diferença de temperatura, nem me apercebia da sua existência. Aqui, vejo uma grupeta de lentos camarões (Palaemon spp.) entocados, com olhos reflexivos que lembram faróis ou filmagens de uma discoteca em tons esverdeados feitas por uma câmera de segurança. As ondas quebram, ao fundo, e ouço os pilritos (Calidris spp.) a dizerem uns aos outros que não estão sozinhos. Aponto-lhes a lanterna e lá vai a dúzia, como uma constelação em movimento, para outro cabeço onde se sintam seguros. As lapas (Patella spp.) raspantes, já no topo do rochedo a fugir do sufoco das areias que se moveram em demasia com a construção de um paredão. Estes devaneios, as comparações ao nosso real, e constante antropomorfização do mundo subaquático estão bem presentes no imaginário e criação do romancista e historiador Jean Painlevé.
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Os Polvos!
Os polvos foram uma das maiores fixações de Jean. O seu primeiro filme público, de 1928, traz-nos um ponto de vista único na altura.
O filme começa, na verdade, num sítio aparentemente familiar. Filmado ao género de um documentário e a preto e branco, a intemporalidade coloca a obra num lugar que podia ser muito bem no sul de Inglaterra ou norte de Portugal, entre Espinho e o Rio Minho, com sedimentos grossos, penedos de granito selados por algas intertidais. Até que Jean tira o polvo do seu lugar, que não a sua toca e tudo muda — a imagem é surreal, expressionista — e é neste ponto que, se alguns clipes fossem retirados da sua montagem, seria difícil interpretar do que se tratava, especialmente para aqueles que sofrem de distração da natureza. Essa relação com o meio subaquático perdurou durante décadas tendo, mais tarde e depois de uma guerra, voltado em 1978 a debruçar-se sobre uns moluscos que de agosto a novembro abundam nas nossas praias. A norte, chamamos vinagreira ou cona-de-velha — epitome da antropomorfização, da etnozoologia — à lesma do mar (Aplysia spp.). O processo de reprodução e definição de género é documentado com precisão através dos relatos altamente descritivos que se aliam às filmagens, sendo que o seu ‘magnum opus’ será obra sobre os cavalos marinhos em que Jean retrata o processo de reprodução fascinante deste peixe.
Biografia
Renato Cruz Santos é um artista multidisciplinar natural de Caxinas, Portugal. No seu trabalho, Cruz Santos explora maioritariamente as temáticas da memória, imaginário ficcionado e desconstrução do real. Grande parte do seu trabalho é produzido na sua terra natal onde tem vários projetos, de longo termo, em desenvolvimento. Trabalha ativamente em várias vertentes de fotografia como jornalismo, música, teatro, dança, cinema - dividindo-se maioritariamente entre o Porto e Lisboa. Tem feito regularmente fotografias para discos e publicado em diversos livros da Galeria Municipal do Porto e Coletivos Pláka.
Exposições
2023 - CAXIFÓRNIA, Escola das Artes da Universidade Católica - Porto
2023 - S16, com Duarte Ferreira, CRL - Central Elétrica - Porto
2023 - Sístole, com Duarte Ferreira, Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas - Ribeira Grande
2019 - Lúgubre, com Duarte Ferreira, no Via Aberta - Porto
2019 - Sístole, com Duarte Ferreira, Galeria Brui - Ponta Delgada
Publicações
2020 - Nortada
Residências
2022-2023 - Residência Artística no Tremor, Ponta Delgada
2022 - Residência Artística no festival Rádio Faneca, Ílhavo
2018 - Residência Artística no Tremor, Ponta Delgada
FICHA TÉCNICA
TEXTO
Renato Cruz Santos
FOTOS
António Jorge Silva, Geneviève Hamon, Vera Marmelo
VÍDEOS
Méduses (1965) de Jean Painlevé
Acera or The Witches' Dance (1972) de Jean Painlevé
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina
DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo