AQUI NO MAR

Para este microsite desafiámos Renato Cruz Santos, artista multidisciplinar e entendedor de mil assuntos marinhos, a escrever sobre Jean Painlevé e a sua obra.

 
A nosso convite, mergulhou no universo do pioneiro documentarista e fotógrafo da vida animal e da fauna subaquática.

Circatidal*

*ao ritmo da maré

por Renato Cruz Santos

 
«Basta que, numa noite de verão bem estrelada, se fique deitado no feno cortado a olhar para o céu e esperar, observando-o atentamente, até que os astros pisquem de fadiga. Em breve, um entorpecimento liberta o corpo, a abóbada celeste curva-se para acompanhar a sua cúpula, a gravidade desaparece, sentimo-nos como que sugados para o infinito, e a viagem começa enquanto os familiares grilos tocam a música das esferas de engrenagens mal oleadas. Tudo é simplificado e explicado: o cheio estava afinal vazio e o vazio estava afinal cheio. A matéria não passa de um buraco. Regressados desta aventura, cremos que sonhámos, e é por essa razão que encontramos poucas pessoas de confiança que o queiram testemunhar!»

- Jean Painlevé

Creio que esta será a definição mais concreta do trabalho de Jean Painlevé e que se cruza perfeitamente com os assuntos de quem vive na azáfama da cidade. O problema da desaceleração. A frase é dele e é retirada do texto sobre o filme Voyage dans le ciel (1937), no catálogo Jean Painlevé (Les documents cinématographiques), dedicado à obra deste pioneiro fotógrafo e documentarista da vida animal e, em particular, da fauna subaquática.

Jean Painlevé © DR.
Jean Painlevé © DR.
Les Decouments Cinématographiques - Jean Painlevé © DR.
Les Decouments Cinématographiques - Jean Painlevé © DR.

‘Tio, sabes quando estás cansado e sais de um lugar e a cabeça não consegue parar?'

disse-me a minha sobrinha depois de sair da faculdade, após um exame. Claro que sei o que é essa sensação. Tantas vezes estou a pensar tanto que nem consigo pensar. Outras tantas vezes, acho que me bastaria chegar à beira-mar ou ao souto para desligar completamente. Já não bastava ter de ir longe e ainda tenho de dar tempo para conseguir sossegar? É a correria que cria a barreira que me impede de atingir a abstração. A abstração dos estímulos que, neste momento, não me rodeiam. É que agora estou noutro lugar. É de noite. Estou no litoral, na praia, num penedo que fica atrás de outro penedo, com os pés dentro de uma poça, a olhar para uma toca, com a lanterna apontada para a água diáfana que, se não fosse pela humidade e diferença de temperatura, nem me apercebia da sua existência. Aqui, vejo uma grupeta de lentos camarões (Palaemon spp.) entocados, com olhos reflexivos que lembram faróis ou filmagens de uma discoteca em tons esverdeados feitas por uma câmera de segurança. As ondas quebram, ao fundo, e ouço os pilritos (Calidris spp.) a dizerem uns aos outros que não estão sozinhos. Aponto-lhes a lanterna e lá vai a dúzia, como uma constelação em movimento, para outro cabeço onde se sintam seguros. As lapas (Patella spp.) raspantes, já no topo do rochedo a fugir do sufoco das areias que se moveram em demasia com a construção de um paredão. Estes devaneios, as comparações ao nosso real, e constante antropomorfização do mundo subaquático estão bem presentes no imaginário e criação do romancista e historiador Jean Painlevé.

Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
O desenvolvimento do seu trabalho, ao longo de 60 anos de carreira, surge precisamente pelo interesse e aproximação às coisas pequenas que apenas nos cruzamos quando baixamos as costas, e enfiamos o corpo e a cabeça no aparente inusitado, abrindo os olhos ao que nunca vimos antes. O fascínio levou-o à obsessão, à fixação por esses lugares, a essa dramaturgia zoológica. Jean Painlevé quis saber mais, quis voltar ao mesmo sítio para vê-los outra vez, entender os comportamentos, entender os hábitos, os ciclos.
Voltar aos mesmos sítios, em determinadas épocas do ano, para voltar a ver um cogumelo ou ouvir um cuco é como ir ao café e estar a contar voltar a ver a mesma pessoa na mesma mesa a ler o mesmo jornal à mesma hora.
© Geneviève Hamon
© Geneviève Hamon
© Geneviève Hamon
© Geneviève Hamon
© Vera Marmelo
© Vera Marmelo

Os Polvos!

Os polvos foram uma das maiores fixações de Jean. O seu primeiro filme público, de 1928, traz-nos um ponto de vista único na altura. 

O filme começa, na verdade, num sítio aparentemente familiar. Filmado ao género de um documentário e a preto e branco, a intemporalidade coloca a obra num lugar que podia ser muito bem no sul de Inglaterra ou norte de Portugal, entre Espinho e o Rio Minho, com sedimentos grossos, penedos de granito selados por algas intertidais. Até que Jean tira o polvo do seu lugar, que não a sua toca e tudo muda — a imagem é surreal, expressionista — e é neste ponto que, se alguns clipes fossem retirados da sua montagem, seria difícil interpretar do que se tratava, especialmente para aqueles que sofrem de distração da natureza. Essa relação com o meio subaquático perdurou durante décadas tendo, mais tarde e depois de uma guerra, voltado em 1978 a debruçar-se sobre uns moluscos que de agosto a novembro abundam nas nossas praias. A norte, chamamos vinagreira ou cona-de-velha — epitome da antropomorfização, da etnozoologia — à lesma do mar (Aplysia spp.). O processo de reprodução e definição de género é documentado com precisão através dos relatos altamente descritivos que se aliam às filmagens, sendo que o seu ‘magnum opus’ será obra sobre os cavalos marinhos em que Jean retrata o processo de reprodução fascinante deste peixe.

Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Ao pai de Jean, Paul Painlevé, influente matemático e ex-primeiro ministro francês, Maurice Ravel dedicou Trois beaux oiseaux du paradis, Benjamin Jekhowsky dedicou-lhe um corpo celeste com o seu nome. Já a sua mãe, Marguerite Petit de Villeneuve, partiu cedo ao trazer ao mundo Jean Painlevé, que cedo foi estudar zoologia, o que lhe permitiu um regime de proximidade com a comunidade científica, conquistando assim oportunidade de observar e trabalhar com matérias ínfimas, filmando desde células a cristais - Transition de phase dans les cristaux liquides, 1979 - Jean debruça-se no invisível ao olho nu, apresentando um filme pontuado por uma banda sonora cósmica saída das mãos do músico vanguardista François de Roubaix. 

 

Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Em 2007, o conjunto Yo La Tengo editou uma nova banda sonora para este filme, lançada no mesmo ano numa coleção da Criterion Films. Edgar Varèse, Alex Calder são outros exemplos de pessoas que o rodeavam mas, certamente, o percurso de Jean Painlevé não seria o mesmo caso, em 1922, não tivesse ido para Roscoff, Bretanha, onde conheceu Geneviève Hamon, sua esposa e colaboradora na sua extensa carreira.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Vistas da exposição Jean Painlevé. © António Jorge Silva.
Parte do trabalho de Geveniève pode ser observado na Culturgest, pelas diversas salas da exposição, em extensos papéis de parede. As ilustrações representativas da marca Painlevé são pano de fundo para o espetáculo visual, dividido entre fotografia e imagem em movimento, que o casal desenvolveu até o final dos anos 80 do século passado.
Esta é a maior exposição individual dedicada ao artista no nosso país. Uma proposta exigente para quem anda apressado e hipnotizante para quem se deixar levar pela sua própria curiosidade através da contemplação do influente artista Jean Painlevé  que está patente na Culturgest até 23 de março.

 

A Poética de Geneviève

Ouvimos a peculiar história do camarão-de-rocha (palemon vulgaris) e da sua troca de pele, ou seja, da sua casca, no filme Histórias de Camarões (Histoires des crevettes) que Jean Painlevé realizou com Geneviève Hamon.

Biografia

Renato Cruz Santos é um artista multidisciplinar natural de Caxinas, Portugal. No seu trabalho, Cruz Santos explora maioritariamente as temáticas da memória, imaginário ficcionado e desconstrução do real. Grande parte do seu trabalho é produzido na sua terra natal onde tem vários projetos, de longo termo, em desenvolvimento. Trabalha ativamente em várias vertentes de fotografia como jornalismo, música, teatro, dança, cinema - dividindo-se maioritariamente entre o Porto e Lisboa. Tem feito regularmente fotografias para discos e publicado em diversos livros da Galeria Municipal do Porto e Coletivos Pláka.

Exposições
2023 - CAXIFÓRNIA, Escola das Artes da Universidade Católica - Porto
2023 - S16, com Duarte Ferreira, CRL - Central Elétrica - Porto
2023 - Sístole, com Duarte Ferreira, Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas -  Ribeira Grande 
2019 - Lúgubre, com Duarte Ferreira, no Via Aberta - Porto
2019 - Sístole, com Duarte Ferreira, Galeria Brui - Ponta Delgada

Publicações
2020 - Nortada 

Residências
2022-2023 - Residência Artística no Tremor, Ponta Delgada
2022 - Residência Artística no festival Rádio Faneca, Ílhavo
2018 - Residência Artística no Tremor, Ponta Delgada

FICHA TÉCNICA

TEXTO
Renato Cruz Santos

FOTOS
António Jorge Silva, Geneviève Hamon, Vera Marmelo

VÍDEOS
Méduses (1965) de Jean Painlevé
Acera or The Witches' Dance (1972) de Jean Painlevé

EDIÇÃO
Carolina Luz

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo

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