PARAR E CONTEMPLAR

DESCOBRIR O SOM

 

Hans Otte (1926-2007) foi um compositor alemão mais conhecido pelo seu trabalho enquanto curador dos festivais Pro Musica Nova e Pro Musica Antiqua e enquanto diretor da Radio Bremen. Foi construindo uma carreira artística discreta, tendo criado um interessante conjunto de obras em diversos formatos – música, instalações sonoras, peças de teatro musical. Das Buch der Klänge [O Livro dos Sons] é a obra-prima do compositor e um momento de rara luminosidade da criação artística do século XX.
Em 1982, o compositor Tom Johnson descrevia desta forma a experiência de assistir ao vivo à estreia de O Livro dos Sons: “pude ouvir o que foi talvez o concerto mais ponderado, mais bem executado e mais inspirador do festival”.

“O que faz o compositor com os sons? Utiliza-os para representar as suas ideias, conceitos, o seu programa político ou literário? Ou procura descobrir a própria natureza dos sons e desenvolvê-los no tempo?”

Hans Otte

Há algo de novo no piano


Tom Johnson, compositor
In Village Voice, 1982

 

A memória do programa de Mauricio Kagel e a estreia da obra de John Cage para cinco orquestras, que ouvi no Metz Festival no último outono, ainda está vívida na minha mente, por isso regressei este ano à pequena cidade francesa, na esperança de encontrar recompensas semelhantes [...]. Mas, novamente, voltei para casa com uma experiência que sei que irá permanecer comigo durante muito tempo. Desta vez, foi um recital de piano solo pelo compositor alemão ocidental Hans Otte. [...]
Reparei que algumas das pessoas que tinham assistido entusiasticamente a outros concertos do festival não se deram ao trabalho de aparecer no recital de Otte. Sem saber o que pensar disso, e tendo aversão a compartimentações, pude ouvir o que foi talvez o concerto mais ponderado, mais bem executado e mais inspirador do festival.

“Otte é um sintetista, reunindo ideias antigas e ideias novas, e fazendo-o de forma inteligente e sensível.”

Das Buch der Klänge [O Livro dos Sons] é um conjunto de 12 peças que durou, nessa atuação, cerca de uma hora e vinte minutos. O estilo da obra pode ser considerado minimalista, dado que cada peça está escrita numa textura bastante simples, sem clímax nem desenvolvimento no sentido tradicional. No entanto, há muito pouca repetição exata e muita concentração na harmonia. Também há um saudável respeito pela tradição. À medida que as texturas mudam gradualmente de um conjunto de notas para outro, a música soa de algum modo mais próxima de Chopin do que de Steve Reich. Enquanto os minimalistas americanos se viram como inovadores e tentaram evitar referências ao passado, Otte é um sintetista, reunindo ideias antigas e ideias novas, e fazendo-o de forma inteligente e sensível.
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Otte iniciou O Livro dos Sons em 1979, e só este ano o terminou, e é óbvio que o trabalhou durante muito tempo. Tocando maioritariamente de memória, o compositor mostrou-se sempre sereno, consistente, confiante. Parecia que tinha tocado estas peças durante anos, e, claro, fora realmente assim. Também a música parecia serena, segura de si, segura do que estava a dizer. Tive a sensação de que o compositor experimentara várias alternativas antes de fazer as escolhas finais, em todos os detalhes, nos pequenos contrastes na dinâmica, nas pequenas mudanças de harmonia, na colocação dos elementos contrastivos.
A composição é dedicada a “Todos aqueles que querem aproximar-se do som, para que, em busca do som, do segredo da vida, descubram a sua própria ressonância.” A minha tradução é assumidamente insatisfatória, mas o sentimento é o apropriado. A peça explora as possibilidades do som a um nível relativamente profundo, e ouvindo-a senti que estava a entrar em contacto com o som, de uma forma que nunca antes tinha experienciado.
Não é que o compositor estivesse a explorar novas cores do piano. Quase toda a música se desenvolve na metade direita do teclado, e as texturas também são relativamente convencionais. Quatro das peças (3, 4, 8, 12) são na verdade apenas sequências de acordes, três (2, 7, 9) seguem padrões simples de arpejo, quatro (1, 5, 10, 11) movimentam-se entre duas sonoridades, e uma (6) é apenas uma melodia que podia ser tocada com um dedo. E, contudo, há algo de novo em toda a música. [...]
Duas das minhas peças preferidas dos últimos anos são The People United, de Frederic Rzewski e Time Curve Preludes de William Duckworts, ambas grandes obras para piano solo e, agora, acrescento O Livro dos Sonsde Otte a esta pequena lista. Há muitas outras categorias vivas atualmente, tal como a música computorizada, obras orquestrais, ópera, quartetos de cordas, escultura sonora e voz solo, mas não consigo pensar em três maiores obras recentes que me tenham agradado tanto como estas três para piano solo. O instrumento de Chopin está vivo e bem, e tão fresco e criativo como sempre, e o mesmo se pode dizer de Hans Otte.
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“Sempre fui uma pessoa obcecada por sons, e nunca deixei de procurar a sensualidade, a clareza. A perceção sensorial dos sons: essa era a minha grande questão.”

Hans Otte

Sentir os Sons


Ingo Ahmels


Perscrutar a natureza dos sons diretamente ao piano tornou-se o caminho preferido de Otte para a composição, no final dos anos 70, o mais tardar. Ao mesmo tempo consciente e intuitivamente, ele ouve, toca, sente as suas séries de sons, modela-as e reformula-as, inspira-as e volta a expirá-las. Só quando parece ter sido encontrado um ponto de equilíbrio, é que as formas são notadas graficamente na partitura, e, se necessário, novamente questionadas e modificadas. O processo de revisão dialético de Otte ao serviço do desenvolvimento é, em suma, o do Ocidente. No entanto, o compositor reconhece, neste contexto: “Estou grato a John Cage pela chamada de atenção para os sons 'tal como são' [...]: a arte do deixar ir, do deixar ser, do deixar acontecer.”
Rescindindo cautelosamente da tradição do piano europeu, condensou (com vestígios de Schubert, Chopin, Debussy, Ravel, Satie e música americana minimal) uma síntese refinada e sempre fluida de antigos e novos mundos sonoros e formais. Das Buch der Klänge, uma composição francamente popular para uma obra de música erudita contemporânea, foi até agora difundida – na própria gravação de Otte, de 1983 – mais de 20.000 vezes em todo o mundo.

Hans Otte

por Ingo Ahmels

 

Nascido em 1926, em Plauen na Alemanha, aos cinco anos de idade, as artes já o fascinavam, concebia dramas e encenava-os em palcos-miniatura construídos por si.
Recebeu a sua formação básica de piano em Bronislaw von Pozniak, a partir de meados da década de 1930. Desde então, compôs peças para piano e outros instrumentos, um concerto para piano aos nove anos de idade e uma primeira sinfonia aos 14. [...] A partir de 1946, Otte pode estudar simultaneamente composição com Kurt Rasch na Academia de Música de Weimar e direção com Hermann Abendroth, na Bauhaus Fine Arts, e também estudou teatro na Stanislawski School of Acting. No mesmo ano, ganhou o Prémio Nacional de Weimar, na categoria de Improvisação. [...]
Depois de um período de estudo na Villa Massimo, em Roma (1959), a Rádio Bremen contratou Otte como o mais jovem diretor musical da ARD aos 32 anos de idade.
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Aí, paralelamente à sua própria carreira artística, desenvolveu uma atividade que marcou uma época, como mediador cosmopolita da música e da arte sonora, especialmente no âmbito das bienais "pro musica antiqua" e "pro musica nova", que fundou, até 1984: com apresentações não dogmáticas de arte musical nova, antiga e culturalmente diferente baseada na mediação sensorial direta, Otte fez de Bremen uma referência de topo no mundo da música, durante muitos anos. Otte, que esteve sempre em intercâmbio internacional com os melhores compositores, intérpretes, pessoas do teatro, artistas visuais e filósofos de hoje, naquela altura pouco conhecidos, atribuiu-lhes uma série de importantes encomendas, muitas vezes contra a resistência maciça dos comités: aos novos intérpretes de música antiga, de Stefford Cape a Nikolaus Harnoncourt, promoveu a criação de mais de 100 novas obras, de Cage a Stockhausen, e a introdução na Europa de música jovem americana, de LaMonte Young a Terry Riley, organizou performances ao vivo e produções de música para piano, de David Tudor a Herbert Henck, palestras filosóficas, de Theodor W. Adorno a Ernst Bloch, e, por último, mas não menos importante, impulsionou uma série de obras multimédia de artistas visuais, de Wolf Vostell a Nam June Paik. [...]
Com o seu segundo grande ciclo de piano, Stundenbuch (1991-98), Otte continua no caminho da abertura integrativa, concentrando-se, desta vez, ainda mais fortemente no "essencial aparentemente simples": o diálogo vivo de Otte com a tradição Zen japonesa, que começou quase simultaneamente com a sua amizade de décadas com John Cage e continuou durante várias estadias no Japão, levou o compositor ao seu trabalho sonoro aberto "que liberta", ouvintes e intérpretes (no sentido de Cage), mas que não requer a técnica aleatória. [...] Partilhar a experiência auditiva diretamente com os pares, expondo a beleza do som que se refere a si próprio e abrindo assim horizontes para o pensamento filosófico e os sentimentos espirituais - estes são os anseios impulsionadores também associados às numerosas obras multimédia de Otte.
Desde o objeto sonoro Atem (1972), arquetipicamente direto, até à sofisticada obra Namenklang (1995), que transforma o som da fala em música espacial coral, Otte desenvolveu continuamente este conjunto de obras. As quase 50 instalações sonoras, esculturas, ambientes de luz e som, séries de imagens, vídeos e, por fim, mas igualmente importante, as 17 peças de teatro musical, utilizam, formalmente e com precisão, um espectro extremamente amplo de técnicas de criação artística para uma e a mesma pessoa.
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“É um antigo sonho meu, descobrir a natureza dos sons, e não usar os sons para dizer uma outra coisa.”

Hans Otte

FICHA TÉCNICA

PIANO
Joana Gama

TRADUÇÃO 
Patrícia Lara

EDIÇÃO E REVISÃO CONTEÚDOS
Maria João Santos

 

Excertos retirados de Ahmels, Ingo. Hans Otte - Klang der Klänge / Sound of Sounds,Rolf W. Stoll (ed.) Mainz: Schott. 2006. ISBN 3–7957–0586

VÍDEO E SOM
Bruno Castro

DESIGN E WEBSITE
Studio Maria João Macedo & Queo

FOTOGRAFIA
Vera Marmelo

 

O evento conta com o apoio da Associação São Bartolomeu dos Alemães em Lisboa.

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