Apofenia é o termo científico para um fenómeno que todos nós já experimentámos em algum momento: a capacidade de reconhecer figuras, padrões ou conexões em dados aleatórios. Dito de outra forma, apofenia acontece sempre que reconhecemos a forma de um animal numa nuvem, o perfil de um rosto no recorte de uma montanha ou a forma de um continente na superfície de uma torrada. Sabemos que nenhuma dessas figuras é fruto de uma intenção prévia. Na verdade, elas resultam da apetência do nosso cérebro para agrupar dados aleatórios em grupos que fazem sentido, do seu irreprimível impulso de tornar uma abstração em algo reconhecível e concreto, da sua vocação para facilitar a emergência de entidades que nascem à força da interação solidária das suas partes.
+ Continuar a LerA mecânica da apofenia pode ajudar a explicar parte da história desta exposição. Contrariamente ao que tem acontecido no ciclo Reação em Cadeia, esta não é uma exposição individual, nem Las Palmas é o pseudónimo de um artista. Las Palmas é o nome de um espaço expositivo gerido por artistas, fundado em 2017 por Aires de Gameiro, Hugo Gomes, Nuno Ferreira e Pedro Cabrita Paiva. Como acontece com a maioria dos projetos deste género, Las Palmas não serve exclusivamente para mostrar as obras dos seus fundadores, mas antes para explorar, através de exposições individuais e coletivas, um território – desta feita, um território que se vai construindo à medida que se avança no caminho. Como na psicogeografia situacionista, este território não é necessariamente feito de vizinhanças: é feito de escolhas, de sintonias, do encontro entre singularidades por vezes distantes, mas que se reconhecem e cooptam mutuamente e, nesse espírito, contribuem para o reforço de uma mesma energia.
A energia que tem sido alimentada pelo projeto Las Palmas é tão exótica relativamente aos proverbiais bom-gosto e seriedade da arte portuguesa quanto o seu nome sugere. Aqui a cor não se intimida, assim como não se retrai o impulso para o abjeto, para a ironia, para o delírio, para a pirraça ou para o displicente. A abordagem dos artistas que orbitam neste universo não é retórica, nem discursiva, nem se pode ler na superfície das suas obras quaisquer laivos de moralismo ou de intenção salvífica relativamente aos problemas do mundo. O que lhes parece interessar, sobretudo, é a possibilidade de explorar uma ambiguidade radical – algo que voga entre estados, não se fixando nunca. Isso afere-se facilmente quando nos concentramos nos formatos e técnicas usados – desenhos parecem impressões, pinturas não usam tinta, esculturas expandem-se no espaço – ou quando consideramos os paradoxos por eles propostos – a mão que imita a máquina, a pintura que quer ser um objeto, a escultura que se afirma como uma experiência ótica. Mas, mais importante, isso comprova-se numa tendência global para voltar ao corpo, ao orgânico, à carne, às entranhas, ao fluido, à seiva. A massa, o indistinto, o informe e todas as alusões mais ou menos veladas à presença de seres (ou de parte de seres) vivos, oferecem a este universo um porventura inesperado caráter biomórfico que transita entre o humano, o animal e o vegetal.
As coincidências ou pontos de contacto entre as propostas que têm cabimento no contexto desta exposição, e do universo Las Palmas em geral, não se confundem com qualquer iniciativa panfletária. Não há aqui movimentos nem manifestos ao jeito modernista. Muito pelo contrário: como na apofenia, a reunião destas singularidades é circunstancial – uma fabricação do cérebro, pronta a ser desfeita se algo de mais premente, significativo ou prazeroso se interpuser. Enquanto perdura, contudo, Las Palmas é um campo de liberdade e experimentação em curso. Um risco partilhado entre pares, nacionais e internacionais, com rosa choque em pano de fundo.
- ResumirArtistas Participantes
Aires de Gameiro
Lisboa (PT), 1989
Arno Beck
Bonn (DE), 1985
Carlota Bóia Neto
Lisboa (PT), 1996
Catherine Telford-Keogh
Toronto (CA), 1986
Eduardo Fonseca e Silva
Lisboa (PT), 1993
Francisca Valador
Lisboa (PT), 1993
Guillermo Ros
Vinalesa (ES), 1988
Holly Hendry
Londres (UK),1990
Hugo Brazão
Madeira (PT), 1989
Isabel Cordovil
Lisboa (PT), 1994
Jason Dodge
Newton (USA), 1969
José Taborda
Lisboa (PT), 1994
Lea Managil
Lisboa (PT), 1991
Line Lhyne
Aarhus (DK), 1991
Lito Kattou
Nicosia (CY), 1990
Maria Miguel von Hafe
Guimarães (PT), 1995
Nuno Ferreira
Lisboa (PT), 1991
Pedro Cabrita Paiva
Beja (PT), 1991
Primeira Desordem
Hugo Gomes, Lisboa (PT), 1989
João Marques, Lisboa (PT), 1989
Rowena Harris
Norfolk (UK), 1985
Rui Castanho
Lisboa (PT), 1986
Sara Graça
Lisboa (PT), 1993
Stefan Klein
Memmingen (DE), 1983
CURADORIA
Bruno Marchand
ASSISTENTE DE CURADORIA
Sílvia Gomes
COORDENADOR DE PRODUÇÃO
António Sequeira Lopes
PRODUÇÃO
(CULTURGEST PORTO)
Susana Sameiro
ASSISTENTE
(CULTURGEST PORTO)
Rui Osório
MONTAGEM
Bruno Fonseca
Renato Ferrão
AGRADECIMENTOS
Aires de Gameiro
Balcony Gallery, Lisboa
CBS – Creative Building Solutions,
Eng. Nuno Abreu
Galeria Duarte Sequeira, Braga
Galleria Franco Noero, Torino
Garcia Néu / Umbigo
Hugo Gomes
Nuno Ferreira
Pedro Cabrita Paiva
Stephen Friedman Gallery, London
E a todos os emprestadores que cederam obras para a exposição, preferindo manter o anonimato.