AO ENCONTRO
DOS SENTIDOS

"O que se vê nos primeiros segundos de um espectáculo de dança?

Um começo, um prazer, uma abstracção? Um corpo esguio, o cabelo ruivo, o desenho de cada gesto, mãos que tentam agarrar o ar? A diferença, o contraste entre os vários bailarinos? São algumas das perguntas e das hipóteses que Sofia Dias e Vítor Roriz colocam nas bocas e nos corpos dos intérpretes de Ruído (Connor Scott, Lewis Seivwright, Mari a Ibarretxe, Natacha Campos, Vi Lattaque), e para as quais convocam cada espectador."

Gonçalo Frota in Público, 2024

O Início

por Sofia Dias & Vítor Roriz

 

"O desejo de continuar a trabalhar com um grupo de performers foi talvez o que nos levou a iniciar este projecto. Da nossa última peça colectiva Escala surgiram várias possibilidades de pesquisa que queríamos conjugar com os modos de dissociação entre texto e gesto que tinham ficado mais ou menos em suspenso da nossa peça em dueto O que não acontece. Podemos por isso dizer que um dos pontos de partida de RUÍDO surge do confronto entre esses dois espectáculos de naturezas tão distintas.

 

De Escala, vamos continuar à procura das vozes que emergem de diferentes estados físicos. Vamos extremar a tensão entre a voz a solo e a voz coral. A voz como um apelo, uma dissuasão, uma celebração, uma delimitação de território, um modo de orientação, uma manifestação de força colectiva, uma afirmação da singularidade, um modo de fusão ou fonte de prazer. De o que não acontece voltaremos às narrativas míticas sobre a transformação e a metamorfose de pessoa em animal, mas também de pessoa em máquina e planta com inspirações animistas e transumanistas.

 

Haverá algo em RUÍDO que pretende ir ao encontro da própria condição volúvel e adaptativa dos mitos, que é talvez a garantia da sua perpetuidade, pois não só se metamorfoseiam ao longo dos tempos, como se adaptam a cada geografia. O que em tempos parecia um rapto de Europa, noutro tempo é visto como uma romântica fuga a dois e, possivelmente, noutro lugar é narrado como um pedido desesperado de evasão. 
 

Os mitos vão assim adaptando-se conforme as reconfigurações dos seus fragmentos e/ou as conveniências de quem os narra. E por nossa conveniência, há aqui uma ponte a fazer entre a plasticidade dos mitos e a neuroplasticidade do cérebro. Como se a natureza rarefeita dos mitos e a incompletude do cérebro fossem condições necessárias para a sua capacidade de adaptação. Uma história sem pontas soltas ou um cérebro com todos os mecanismos pré-determinados não permitem qualquer adaptação ou metamorfose, seriam pouco “plásticos”. Esta ponte entre o mito e o cérebro é-nos conveniente por causa da pesquisa que estamos a desenvolver numa residência artística na Fundação Champalimaud (2023-2024). O que pareciam dois projectos independentes, a peça RUÍDO e a residência nesta fundação, começam agora a revelar conexões que os tornam indissociáveis. Foi durante esta residência que chegamos ao conceito que serve de título a esta peça: ruído. Um conceito que no campo da neurociência adquiriu uma aura de mistério pela sua omnipresença no funcionamento neural e dificuldade em ser explicado.

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O ruído tanto representa o nada, o irrelevante, o que perturba e polui como também o caudal de informação significativa que (ainda) não conseguimos apreender. A aura poética desta ambivalência, entre tudo ou nada, e a semântica acústica a que nos remete, tem tudo que ver com o trabalho sobre a voz, o som, o texto e o mito que temos vindo a desenvolver. O modo como os actores se movem, como se não tocassem o chão, faz com que Ion finalmente nos leva a um suspense profundo e alegre. O paradoxo da liberdade possível, sobre as nossas cabeças.

 

Mas a influência da residência na Fundação Champalimaud não se fica pelo conceito de ruído. Nos últimos meses abriu-se uma outra via de investigação um pouco inesperada para nós, porque sempre tendemos mais para o analógico do que para o digital. No entanto, a nossa relutância em relação, por exemplo, à inteligência artificial centrada sobre quem é que a desenvolve (as grandes empresas tecnológicas) e com que fins (lucro e poder), tem dado lugar a um questionamento de cariz mais ontológico sobre o que é ser pessoa, o que é a criatividade, a imaginação e o viver em comunidade. A pretexto da inteligência artificial, temos vindo a pensar sobre o circuito de feedback que sempre existiu entre as ferramentas que fomos criando ao longo dos milénios e a percepção da realidade, a construção da memória e até a própria fisiologia humana. 

Como muitos outros conceitos, “ruído” serve-nos agora de lente para olharmos a realidade e sugere-nos um campo semântico que permite associações entre elementos aparentemente desconexos. Para além disso, RUÍDO parece tocar num problema fundamental de sensibilidade e que não é apenas acústica: o que antes era inaudível ou que parecia apenas barulho, o que era negligenciável ou supérfluo, pode, com outra sensibilidade, tornar-se significativo."

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© Bruno Simão.
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O Projeto Invisível #7 
O Som do Ruído

> Em princípio, o ruído é aquilo que nos incomoda, que perturba o silêncio e nos distrai. Mas o ruído também pode ser uma fonte valiosa de informação, revelando algo que não conseguimos decifrar. Essa dualidade torna o ruído curioso. Sofia Dias e Vítor Roriz, em colaboração com investigadores do Champalimaud Center for the Unknown, mergulharam na complexidade do ruído, explorando essas camadas, para a criação do espetáculo de dança precisamente chamado… Ruído. Vamos ouvir alguns sons do espetáculo.

Um som que desprezamos?

O título desta criação – Ruído – tem tanto de breve como de misterioso. Mas ao assistir aos ensaios, tive a impressão de que era como um fio que estava a ser puxado e que transportava consigo muitos nós e muitas perguntas. Porquê este título?

Sofia Dias (SD): Quando falamos de “ruído”, trata-se  normalmente de um sinal parasita que degrada a transmissão de uma mensagem ou de uma informação. A palavra está associada à destruição, ao que não é central, mas sim irrelevante, perturbador, poluente. É a parte do som que desprezamos. No seu sentido metafórico, é também a nuvem de sentimentos que nos afetam: as memórias que nos assombram, as emoções que nos assaltam a cada momento, a vozinha interior que nos condena ao fracasso... Em Ruído, decidimos aceitar estes incidentes e estes acidentes para dar ao presente toda a sua profundidade.

Vítor Roriz (VR): E tu, em que é que pensas quando lês a palavra “ruído”?

O título do espetáculo – Ruído / Noise – e o que disseste sobre esse “desprezo” pelo ruído fazem-me lembrar um livro publicado pelo musicólogo americano Alex Ross, intitulado The Rest Is Noise. É uma obra sobre a música no século XX, que combate o cliché de que a criação musical contemporânea se teria degradado num caos sonoro amorfo. O título irónico remete para uma frase de Hamlet: “The rest is silence”...

VR: Sim, há ruído no silêncio e há beleza no ruído. Aquilo que parece ser apenas um caos sonoro à primeira audição revela um valor oculto, basta ouvirmos com atenção. É possível que esse caos contenha em si a música do mundo que há de vir... É essa beleza secreta que procuramos com os cinco intérpretes de Ruído.

O ruído também faz parte do vosso processo criativo. Ao observar-vos, reparei que muitas vezes se esforçam por baralhar as coisas, por perturbar situações demasiado limpinhas, por derrubar a quarta parede para entrar em relação com o público... De tal forma que, ao contrário dos teatros que põem um sinal na porta à entrada dos seus espetáculos, para Ruído teríamos a tentação de escrever: “Por favor, perturbe o espetáculo que está a decorrer.”

SD: Aceitar o ruído e o inesperado também nos leva a tentar estabelecer pontes com os espectadores, a rejeitar a ideia de que a presença deles seria fortuita, e de que o espetáculo poderia ser feito perante os seus olhos como se não estivessem lá.

VR: Acho que temos questões com os espaços cénicos convencionais que separam os intérpretes do público. Preferimos assumir um espaço mais performativo que não tenha nada a esconder e que mostre o espetáculo como uma tentativa – coisa que é.

Para este projeto, estiveram em residência na Fundação Champalimaud, onde tiveram a oportunidade de trocar ideias com cientistas no âmbito do programa Bridges to the Unknown. O que é que trouxeram dessa troca?

SD: É o que acontece, durante  espetáculo, no momento em que a intérprete Maria Ibarretxe imagina a viagem de um espetador que se levantaria e iria juntar-se a ela em cena: como se ela lhe mostrasse um dos possíveis futuros que se lhe oferecem...

Esta ideia dos “possíveis” faz-me lembrar o trabalho do físico americano Hugh Everett que, nos anos 50, concebeu a teoria dos mundos múltiplos, um modelo em que o nosso mundo seria apenas uma bolha entre uma infinidade de outras bolhas, habitadas por outros “eus” que tinham feito escolhas diferentes... Parece-me que, em Ruído, a coreografia também trabalha em torno deste ponto de viragem que é o presente...

SD: Sim, gostamos de trabalhar com gestos do quotidiano e explorar o seu passado e o seu futuro: de onde vêm estes gestos? Qual é a sua história? Em que é que se poderiam transforar se os deixássemos viver?

Para além desta relação com o presente, parece-me que Ruído contém outra coisa: uma certa nostalgia ou melancolia por aquilo que já passou, que já não existe. Nalgumas cenas, aflora a impressão de um outro tempo, uma espécie de sentimento trágico... Aliás, uma das vossas primeiras inspirações pertence à mitologia grega: o mito de Cadmo e Harmonia – sendo que se pode entender aqui a harmonia como o oposto de ruído...

VR: Sim, a leitura do livro de Roberto Calasso – As Núpcias de Cadmo e Harmonia – marcou-nos. O escritor italiano conta como Cadmo, rei de Tebas, casou com a deusa Harmonia, e como as suas núpcias foram a última vez em que os deuses se sentaram à mesa dos humanos: um momento de felicidade seguido de uma longa cadeia de catástrofes e desgraças, como é habitual na mitologia grega. É possível que a harmonia e a promessa que ela encerra sejam ilusórias. Esta inspiração foi depois arrastada pelo rio do processo de criação. Mas julgo que os cinco intérpretes de Ruído procuram – através do canto e da dança – este equilíbrio instável. Procuram-no mesmo no coração do caos.

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Esta inquietude, essa obsessão com a perda que sentimos por vezes no espetáculo, passa também pelas palavras e pela tentativa desesperada de nos agarrarmos a elas...

SD: Inicialmente, esta reflexão sobre as palavras surgiu de uma preocupação prática: uma vez que é frequente os nossos espetáculos utilizarem várias línguas, procuramos  soluções para a legendagem. Em Ruído, gostamos de dar às palavras uma certa materialidade: podem ser usadas para tornar tangível o momento presente, para lhe dar consistência, para nos convencermos de que “isto” existe. Mas o fenómeno do ruído também tem a ver com as palavras. Será que o seu significado está fixado? Será que são lugares que nos permitem encontrarmo-nos? Ou estão sujeitas a conflitos e mal-entendidos? Enquanto artistas, temos alguma desconfiança em relação às palavras, que têm o perigo de explicar os gestos mostrados em palco, de lhes congelar o significado... É por isso que as palavras também têm de dançar.

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FICHA TÉCNICA

FOTOGRAFIA
Bruno Simão

TEXTO
Sofia Dias & Vítor Roriz

TRADUÇÃO ENTREVISTA
Joana Frazão

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina

EDIÇÃO
Carolina Luz

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo