Por uma democracia pluralista capaz de criar espaços de convivência mais saudáveis.
Adela Cortina fala-nos da atual crise aberta na democracia. Apresenta-nos caminhos possíveis para a combater e alerta-nos para os fenómenos sociais que expõe. Antes de recebermos a conversa moderada por Fernanda Henriques, mergulhamos no pensamento de filósofa em torno da ética cívica da qual partem as suas reflexões.
"O estrangeiro não é rejeitado, mas o pobre é."
Adela Cortina
APOROFOBIA
a.po.ro.fo.bi. aapurɔfuˈbiɐ nome feminino
O termo vem de duas palavras gregas: "áporos", o pobre, o desamparado, e "fobéo", que significa temer, odiar, rejeitar. Da mesma forma que "xenofobia" significa "aversão ao estrangeiro", aporofobia é a aversão ao pobre pelo facto de ser pobre.
"A solidariedade exige identificação."
Adela Cortina em entrevista à investigadora Ana Vilares
Ana Vilares: No seu livro Neuroethics and Neuropolitics, a professora Cortina fala da nossa capacidade de retribuir, mas com uma crítica a Marc Hauser. Se é verdade que as pessoas têm a capacidade biológica de reciprocidade, também é verdade que as pessoas têm essa capacidade dentro de um determinado grupo, com pessoas que conhecem e reconhecem. Mas os desafios dos direitos humanos coloca-nos numa posição que exige muito mais de nós. Porque uma coisa é eu reconhecer o outro, que é meu familiar ou amigo, e outra é eu reconhecer o outro na sua diferença e ser capaz de me identificar com ele. A solidariedade exige identificação. E sabemos que os grupos têm valores diferentes que por vezes não são morais, ou seja, não há justiça em alguns dos seus valores culturais.
Adela Cortina: De facto, quando falamos da capacidade de reciprocidade, que me parece muito interessante, porque descobrimos que os seres humanos não são aqueles egoístas racionais de que os economistas falavam um pouco distraidamente, mas que o que é realmente do interesse do ser humano é a reciprocidade, e penso que isso é muito importante. Espero que a União Europeia se ocupe disso de alguma forma, pelo menos retribuir seria importante, pelo menos passar a sê-lo, da forma mais elementar. Ora, os direitos humanos não podem ser defendidos apenas com base na reciprocidade, porque os direitos humanos não significam: “Respeito os direitos daqueles que podem dar algo em troca”, que é a chave da reciprocidade, mas sim que respeito os direitos de todos os seres humanos que reconheço como seres dotados de dignidade. Assim, nesse sentido, parece-me que a tradição do pacto é mais profunda do que a tradição do contrato. A tradição do contrato é criar uma comunidade política, mas mesmo essa comunidade política precisa de ter como base o reconhecimento dos direitos humanos. E isso não vem da reciprocidade, mas do reconhecimento. Só que, como sabem, posso encontrar pessoas que têm uma cultura muito diferente ou posso encontrar pessoas com quem trabalho, e aí chego a um nível de reciprocidade, mas posso não chegar ao nível do reconhecimento.
Só posso pensar em instrumentalizar o outro, e pensar que ele só me serve para alguma coisa ou para aquilo, e assim não estou a respeitar a dignidade do outro. Tal como quando Kant, na famosa formulação do homem como um fim em si mesmo, dizia “trabalha de tal modo que trates a humanidade, tanto em ti como em todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim e nunca apenas como um meio”. É claro que podemos instrumentalizar-nos mutuamente, porque nos servimos das qualidades uns dos outros, mas ao mesmo tempo temos de nos reconhecer como fins em si mesmos, dotados de dignidade, e isso só pode ser feito com base na valorização da dignidade do outro, que é a chave do reconhecimento. Já em Aliança e Contrato concordo com o facto de ele ter falado das fissuras no contrato de defesa dos direitos humanos. Uma comunidade política em que estou não só com pessoas com as quais tenho um contrato, mas com as quais tenho também uma relação de reconhecimento dos seus direitos, e depois há um grande número de pessoas que não entraram em nenhum pacto e, no entanto, lá estão elas. Por conseguinte, parece-me que o reconhecimento é mais profundo do que a reciprocidade e que as tradições de reconhecimento devem ser cultivadas e postas em prática ou não haverá democracias sérias.
Excerto de entrevista de Adela Cortina com Ana Vilares
Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 31 (2014) 149-162
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Ética e reciprocidade
Sobre Adela Cortina
Adela Cortina é membro da Real Academia Espanhola de Ciências Morais e Políticas e Catedrática Emérita de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valência. Cortina dedicou sua carreira académica ao pensamento em torno de temas como ética do discurso, ética da razão comunicativa e ética da cidadania. A sua obra abrange um compromisso com a promoção do diálogo intercultural e a aplicação da ética em diversas áreas, incluindo bioética, meio ambiente e educação.
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EDIÇÃO
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