Sónia Almeida mostra-nos em Ó (ó agudo) que a pintura tem inesgotáveis formas de se mostrar. Neste microsite, entramos na primeira retrospetiva da artista plástica e ouvimos as histórias que ocupam cada uma das salas. Sónia Almeida fala-nos de processos e motivos, e conta-nos que ainda é possível desafiar as expetativas sobre o que a pintura é, enquanto se procura o que ela pode vir a ser.
"Sónia Almeida traz para este processo motivos variados, alguns mais referenciais, outros mais formais e especulativos. A justaposição do corpo, figurativo, motivos representativos, e referenciais, executados sobre um tecido com textura, pintado à mão ou fundo impresso à mão, são elementos comuns em grande parte do seu trabalho, criando a sua própria gramática visual."
João Ribas, sobre Ó (o agudo)
Bruno Marchand sobre Ó (o agudo),
de Sónia Almeida
No ano de 2009 convidei Sónia Almeida para fazer parte do ciclo de exposições individuais que comissariei no Chiado 8, hoje Fidelidade Arte, em Lisboa. No texto que escrevi para acompanhar a mostra, centrei parte do argumento na ideia de que aquele corpo de trabalho transportava consigo uma carga experimental discreta, mas determinante.
A convivência prolongada com aquelas pinturas havia-me convencido de que parte das soluções que elas propunham surgiam por efeito de um processo analítico que se divertia a aferir situações tão díspares como a resistência dos referentes face à sua eventual dissolução em pintura, os limites da convivência de tonalidades e vibrações dissonantes entre si, o quanto se pode fazer depender uma pintura das acuidade e endurance da atenção do espectador, ou onde se situam efetivamente as fronteiras entre o ilusório e o concreto, a figuração e a abstração (a exposição intitulava-se To Be Abstract).
Grelhas, formas geométricas, monocromias, velaturas, escorrências, empasto e uma miríade de outras opções pictóricas confluíam numa mostra que questionava, de forma lúdica e desassombrada, os fundamentos da própria prática pictórica e que passou pelo circuito expositivo português como uma leve brisa.
+ Continuar a LerEm certo sentido, essa brisa foi um dos primeiros sintomas do estatuto paradoxal que, nos anos seguintes, consolidou Sónia Almeida como uma das mais desconhecidas de entre as reconhecidas artistas nacionais. Senão vejamos: entre To Be Abstract e Ó (ó agudo), não houve nenhuma exposição individual sua no nosso país, mas o seu trabalho foi mostrado a solo em Itália, na Bélgica, no Reino Unido e nos Estados Unidos. As exposições coletivas em que participou em Portugal foram esparsas, mas todas tiveram lugar em espaços institucionais de relevo, como Serralves, EDP, Atelier-Museu Júlio Pomar ou Gulbenkian. O mesmo tipo de contradição tem lugar no campo da fortuna crítica, ou não fosse a escassez da sua bibliografia na língua portuguesa contrabalançada pelo facto de o seu nome figurar nas mais significativas publicações nacionais que se debruçaram sobre os desenvolvimentos recentes no campo da Pintura[1], sobre as artistas da sua geração[2] ou do seu género[3].
Dir-se-ia que esta condição esquizofrénica da presença de Sónia Almeida no nosso panorama encontra a sua razão no facto de a artista não viver no nosso país desde que se licenciou em Pintura na FBAUL, em 2001. Embora esse seja certamente um fator a ter em consideração, parece bastante mais decisivo reconhecer que o tipo de investigação pictórica que Sónia Almeida tem perseguido ao longo destas duas décadas não tem óbvios precedentes no nosso contexto. A generalidade dos artistas e/ou dos fenómenos que a interessaram não apenas se desenvolveram fora do nosso país, como trilharam caminhos nas margens das correntes dominantes da chamada pós-modernidade. As suas obras deixam presumir, por exemplo, que ao apelo da Transavanguardia ter-se-á sobreposto o fascínio pelo Pattern & Decoration norte-americano, assim como à sedução da Bad Painting ter-se-ão imposto as propostas do Realismo Capitalista e as suas derivações numa dada pintura centro-europeia das últimas décadas. Se a esta falta de contexto de receção juntarmos a obstinada opção da artista por uma prática que não se deixa enredar em fórmulas e que está permanentemente vigilante quanto a estatismos ou a facilitismos estético-programático, temos um caso agudo de descompasso entre mãos.
Mas se Sónia Almeida dificilmente algum dia integrará em pleno o tecido artístico português, também dificilmente integrará plenamente qualquer outro. O título desta exposição remete, pelo menos parcialmente, para esta questão. «O acute» é o reparo que a artista faz sempre que soletra o seu nome em inglês. Escolher fazer ou não esse reparo (o nome Sonia, sem acento, é corrente nos Estados Unidos, onde a artista vive) implica uma reflexão que não se atém ao rigor ortográfico. Ela situa-se, mais propriamente, no campo da afirmação identitária, sendo que o que está efetivamente em causa é escolher entre a diluição do próprio num contexto que o tem por estranho (uma elisão voluntária da identidade original) ou a afirmação de uma singularidade que será tão mais pungente quanto mais claramente contrariar o dito contexto (optar pelo reverso de uma aculturação). Insistir nesse «O acute» não é apenas insistir na especificidade – é saber, simultaneamente, o valor e o custo de adversar um dado contexto; é saber-se que um contexto é uma máquina de nivelar, mas estar-se seguro que, na vida como na arte, tudo o que verdadeiramente importa se faz de exceções.
A exceção que esta exposição inscreve no percurso de Sónia Almeida é da ordem da precedência: esta é a sua primeira exposição retrospetiva. Ó (ó agudo) reúne um conjunto de obras que dá testemunho dos desenvolvimentos que o trabalho da artista conheceu na última década e meia – sensivelmente, desde a realização de To Be Abstract. Ao arrepio das melhores práticas historiográficas, e ainda que se inicie com as peças mais antigas, a exposição não está organizada de modo cronológico. O que guiou a organização destas salas e das obras dentro delas foi uma espécie de intuição musical: como se se retirasse de uma composição todos os elementos harmónicos e melódicos e se deixasse apenas uma sequência de módulos, cada qual com uma dada respiração e uma dada intensidade. À semelhança do que acontece na generalidade das obras musicais, esta exposição socorreu-se sem pudor do expediente da repetição: há displays e soluções que recorrem e reaparecem em momentos precisos, e as alas em que ela se bifurca são, na verdade, simétricas nas suas estrutura e lógica de ocupação.
Claro que esta intuição foi amplamente fomentada pelas obras de Sónia Almeida. Nelas abundam referências a este universo, seja na forma de pautas, nas alusões ao tempo, ao movimento, ao palco ou à coreografia. Muitos dos corpos, dos gestos e das poses que nelas reconhecemos pertencem, aliás, a esse universo da dança ou da performance ensaiada. Ele é presente o suficiente para impor um certo timbre, um ambiente que, não esgotando o universo dos assuntos aflorados nas pinturas, não deixa de determinar uma tonalidade geral. O percurso e o comportamento que a exposição sugere ao espectador é também desta natureza. E é-o porque as peças, elas mesmas, convocam permanentemente o nosso corpo. Tem sido, aliás, para este território – para o território do corpo da pintura – que a artista tem vindo a expandir o seu impulso experimental. Gradualmente, as pinturas deixaram de se apresentar como objetos estáticos e intocáveis, para passarem a pedir ao visitante uma interação que é da ordem do toque, da deslocação, até mesmo da transformação. Seja na forma de estruturas que se assemelham a oratórios, de colunas móveis e conjugáveis, de superfícies ambiversas, suspensas ou com partes móveis, muitas destas obras têm como objetivo deslocar-nos do lugar de testemunhas oculares para nos implicarem diretamente na amplitude e no resultado da experiência artística.
Afinal, não é apenas o corpo da pintura que está em causa. Pelo quanto exige do nosso envolvimento efetivo, esta exposição fala também do nosso próprio corpo, das suas medidas, da sua verticalidade, da sua motilidade, da sua simetria. Fala ainda, e muito particularmente, da capacidade que temos para nos deixarmos envolver num fluxo de estímulos e respostas que desafiam as nossas capacidades e questionam os procedimentos normativos a que nos sujeitamos por imposição, por inclinação ou por hábito. Um desafio percetivo que se torna num jogo fenomenológico que desemboca num processo crítico sobre o nosso lugar e o nosso papel na dimensão constitutiva da experiência sensível.
Cumpre-me agradecer, pessoalmente e em nome da Culturgest, a todos aqueles que connosco colaboraram para realizar esta exposição e publicar este livro. A Simone Subal e à sua equipa impõe-se um reconhecimento particular pela energia que souberam insuflar em momentos críticos do processo de produção. Aos emprestadores, saúdo a confiança em nós depositada e, sobretudo, o facto de não abdicarem de contribuir para que as suas obras façam o trabalho que foram criadas para fazer. Aos autores convidados, agradeço a cumplicidade e a generosidade intelectual que se traduziu em ensaios que abrem valiosas portas de entrada para uma obra particularmente rica e desafiante. Por fim, um agradecimento especial a Sónia Almeida que, do outro lado do Atlântico, e em condições tantas vezes adversas, não deixou nunca de se fazer presente, de se irmanar do nosso empenho e de nos contagiar com o seu entusiasmo.
[1] Veja-se o volume Sérgio Fazenda Rodrigues (ed.), Contemporânea #5, Lisboa: Contemporânea, 2020.
[2] Desde logo, e a título de exemplo, cf. Miguel von Hafe Pérez (ed.), Propostas da Arte Portuguesa – Posição: 2007, Lisboa; Porto: Público; Serralves, 2007.
[3] Cf. Helena de Freitas e Bruno Marchand (eds), Tudo o que eu quero – Mulheres artistas portuguesas de 1900 a 2020, Lisboa: INCM; Gulbenkian, 2020.
- ResumirFICHA TÉCNICA
FOTOGRAFIA
Vera Marmelo
TEXTO
Bruno Marchand
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Helena César
DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo