No âmbito do Zürcher Theater Spektakel de 2019, em Zurique, o dançarino e coreógrafo Boris Charmatz testou o seu [terrain], o conceito mutável de uma neo-instituição sem paredes nem teto
um espaço verde urbano dominado pela ideia de uma arquitetura humana que investe a sua superfície, o seu chão, em suma o seu terreno, mais ou menos vazio e aberto, com vista a transmitir por meio da dança as questões que transformam o nosso tempo, mas também a essência do nosso desejo (da nossa necessidade) de dançar. César Vayssié gravou os aquecimentos públicos, workshops, performances, improvisos e discussões, bem como a pista de dança – tudo o que deu forma a esta ocupação do Landiwiese, ao longo do Lago de Zurique, durante três semanas.
[terrain]
Uma entrevista com Boris Charmatz por Gilles Amalvi, julho 2020
Depois de dirigir o Musée de la danse durante dez anos, lançou o [terrain] em janeiro de 2019, com a ideia de unir a dança e o espaço público, de intensificar a relação entre esta arte do corpo, do movimento, e a cidade – como um espaço aberto, sem paredes. A propósito do [terrain], manifestou a necessidade de uma “nova cultura”, consciente das questões sociais e ecológicas que afetam a sociedade. Este projeto resulta de uma consciência da necessidade de fazer arte de forma diferente num mundo em crise?
Considero-me, acima de tudo, um artista – é daí que vêm as minhas motivações e desejos. Gostaria de ter ideias revolucionárias para salvar o planeta, para criar maior igualdade entre as pessoas, mas decidi fazer arte: arte não apenas como cultura, mas arte como um vínculo social, arte política e ecológica. É esta posição que me permite falar, trabalhar, explorar, conhecer cientistas, filósofos, arquitetos, artistas, paisagistas. É como dançarino que assumo uma posição; não é uma atitude de fechamento ou afastamento do mundo social – antes pelo contrário. É esse o meu ponto de partida.
Acontece que, durante os dez anos que passámos a moldar o Musée de la danse, tivemos ainda mais oportunidades para investigar o espaço público. Tornou-se a nossa área de investigação. Durante este período, questionei-me como é que poderíamos inventar um novo tipo de espaço público para a dança – um espaço que conseguisse derrubar a separação entre estúdio e ar livre, entre os dançarinos e o público. Se fôssemos construir um Musée de la danse independente do Centre Chorégraphique, como é que seria enquanto edifício, em termos da sua forma arquitetónica? Pode dizer-se que, de certo modo, o evento If Tate Modern was Musée de la danse?, que decorreu no Tate Modern em 2015, foi uma forma de testar um espaço assim. Foi uma oportunidade para ver se um museu desta natureza podia acontecer, se podia realizar-se num espaço arquitetónico concebido para acolher obras de arte, objetos materiais. Claro que não se tratou de fantasiar com um edifício tão grande como o Tate Modern, mas permitiu-nos testar os limites e possibilidades de um espaço destes.
+ Continuar a LerA descoberta para mim aconteceu na primeira edição do Fous de danse, em Rennes, na Esplanade Charles de Gaulle, uma grande praça vazia, sem paredes; um local de passagem exposto às vicissitudes do clima. Percebi que a ausência de um edifício era, na verdade, a arquitetura ideal. Um edifício é um espaço que protege, que abriga, ao passo que o facto de estarmos a céu aberto, desprotegidos, sujeitos às mudanças do clima, ao barulho, ao trânsito – condições que os dançarinos tendem geralmente a evitar – deu consistência a uma ideia, e esta ideia já era um espaço. Nesse espaço, conseguimos criar uma arquitetura humana, coreografar a multidão, transformar o espaço em tempo real, agir sobre as deslocações com base na configuração dos eventos que ali estavam a acontecer – os duos, o Soul Train, os aquecimentos, etc. Tudo funcionou. A hipótese de um local sem paredes, em plena rua, começou a ganhar forma. Em vez de um estúdio de dança tradicional, não deveríamos antes inventar um terreno: flexível, fluido, responsivo, recetivo? Um terreno onde dançar; um espaço verde, um campo sem teto, sujeito aos estados de espírito da cidade. Naturalmente, esta descoberta em relação às condições da dança – condições de produção, invenção e receção – implica uma relação com a sociedade. Colocarmo-nos na paisagem urbana significa estarmos conectados a tudo o que acontece na sociedade, estando diretamente relacionado com a crise, a poluição, os meios de transporte, as manifestações. Assim, diria que na origem do [terrain] não houve um desejo de atacar os problemas ecológicos, mas de estar, por força da nossa situação, diretamente no meio de toda a atividade.
- ResumirUm dos princípios fundadores do [terrain] é a imersão no espaço da cidade. Muitos movimentos artísticos tiveram por base o desejo de romper com a cidade como uma forma de trabalhar em isolamento. Como é que podemos interpretar o seu ADN urbano?
Mesmo que as cidades estejam, de facto, a tornar-se cada vez mais espaços de interseção, continuamos a pensar a “cidade” em oposição à “natureza” ou ao “campo”. Esta dicotomia tem sido comum entre os artistas e dançarinos desde o início da modernidade – seja no Monte Verità ou no Black Mountain College. Por um lado, a cidade é conotada com o caos e a desordem; por outro, a natureza é vista como um regresso às raízes. Para mim, a “cidade” não se opõe à “natureza”. As cidades são laboratórios de biodiversidade, bem como de diversidade cultural, subjetiva. Em resultado, é necessário repensar a cidade como um espaço de entrelaçamento, circulação e interseção ao nível das práticas artísticas e dos modos de produção. A título de exemplo, em vez de sonhar em ter um teatro – que seria o equivalente a ter um carro na cidade –, sonho em ter um terreno, que é mais como ter uma bicicleta. Gosto da analogia entre o projeto [terrain] e uma bicicleta: também requer energia corporal e iluminamos o nosso caminho com a ajuda de um dínamo e com a energia e luz da cidade.
FICHA TÉCNICA
[terrain] Lisboa
INTERPRETAÇÃO
Laura Bachman, Régis Badel, Ashley Chen, Sofia Dias, Angela Diaz Quintela, João dos Santos Martins, Henrique Furtado, Tatiana Julien, Georges Labbat, Johanna Elisa Lemke, Piny, Vítor Roriz, Lewis Seivwright,
Bruno Senune, Solène Wachter
CONCEITO E COREOGRAFIA
Boris Charmatz
ASSISTENTE DE COREOGRAFIA
Magali Caillet Gajan
AGRADECIMENTOS
Perig Menez, Guilhem Chatir, Julien Gallée-Ferré, Simon Le Borgne, Noémie Langevin, Cathernine Wood
DIREÇÃO ARTÍSTICA [terrain]
Boris Charmatz
VICE-DIREÇÃO
Hélène Joly
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO
Lucas Chardon, Martina Hochmuth
GESTÃO DE PRODUÇÃO
Jessica Crasnier, Briac Geffrault
MICROSITE
IMAGENS E VÍDEO
© César Vayssié
TEXTO
Entrevista de Boris Charmatz a Gilles Amalvi, julho de 2020
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina
DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo