TELEFONE DO VENTO

«Foi com a expectativa de um pequeno milagre que um homem entrou numa cabine telefónica desligada da rede e a que chamam Telefone do Vento na cidade de Otsuchi, no Japão, depois do tsunami de 2011. Ele ia falar com um morto. A expectativa deste homem do outro lado do mundo tem sido uma companheira minha deste lado de cá. E quase parece uma forma condensada de falar sobre a arte, os rituais, certas viagens, gestos e conversas que em última instância nos podem mudar a vida. Parece-me que ao longo dos nossos dias, mesmo que por outras palavras, de vez em quando esperamos que pequenos milagres aconteçam. Uma expectativa que nos lembra que ainda não desistimos. Talvez esperança.

Quando aprendi sobre a expectativa deste homem do outro lado do mundo, atravessávamos um dos momentos de recolhimento obrigatório durante a pandemia. Eu estava na aldeia onde vivem os meus pais, e de vez em quando ia correr para a estrada nacional deserta. Enquanto corria ouvia podcasts. Foi num deles que soube desta cabine telefónica no Japão. Às vezes é difícil saber onde começa o percurso que nos leva a um espectáculo - e mesmo quando julgamos saber, estamos muito provavelmente enganados: um espectáculo, qualquer espectáculo, leva a vida toda a fazer-se - mas naquele dia, naquela corrida, tive imagens claras de um espectáculo. 

É, portanto, durante a noite que este espectáculo começa a nascer. Durante uma noite metafórica. Uma noite que associo ao desamparo. Nem sempre é assim mas, por vezes, o pôr-do-sol é um momento de angústia. Durante a noite, esse lugar que por vezes me remeteu para a solidão, uma solidão quase companheira em que podemos, como naqueles dias de recolhimento obrigatório, caminhar no meio da Avenida de Roma, passar pelo Marquês de mota e pensar que a cidade está por nossa conta. Durante a noite, se não tivermos um ponto de luz que nos ampare, estamos perdidos - para o bem e para o mal. E é durante a noite que muitas vezes nos dá para criar a expectativa de que um pequeno milagre aconteça.»
© Beatriz Pequeno
© Beatriz Pequeno
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«É um solstício de inverno: a esperança de que as noites fiquem cada vez menores, de que o sol possa brilhar um pouco mais.»

O trabalho de um artesão

«Victor Afonso é o artesão que concretiza uma das faces do espetáculo. A forma como fala do surgimento da máscara, da escuta da madeira, a forma como intuímos a imaginação e a sensibilidade cúmplices no trabalho do Victor inspirou uma espécie de temperamento para o espectáculo, que é sobre muito do que o Victor fala: uma forma de atenção e relação com o mundo que não tem muitas vezes palavras para ser definida.»

Madrugada

« Os olhos habituam-se à sombra, e mesmo antes do sol nascer começamos a ver o que a noite escondia. Na criação de um espectáculo, são livros que vamos lendo, conversas que temos, viagens que fazemos. É a experiência do mundo a informar o nosso percurso. 

Depois de me cruzar com a leitura de Elisabeth Kübler-Ross sobre os estádios da morte e do luto, de Amy Bloom sobre acompanhar uma pessoa amada na sua morte, de George Saunders, num livro que se situa no bardo - que me remeteu para ao Livro Tibetano da Vida e da Morte -, a ideia de bardo começou a instalar-se na minha imaginação. O bardo é uma madrugada, o lugar onde algo já terminou e o que se segue ainda não começou. Lembra-me o conceito criado na Sociologia por Émile Durkheim, a Anomia: um estado entre o fim de uma sociedade e o início da outra. O intervalo. O não-lugar a não-vida-nem-morte. A anomia é um bardo social, provocado por transformações rápidas do mundo. Um estado em que certamente criamos em nós e no mundo a expectativa de um pequeno milagre. 

A estas intuições somamos uma estadia em Vinhais, para onde fui à procura das máscaras que me apareciam na imaginação sempre que pensava neste telefone do vento. Em Trás-os-Montes, aconteceu-me chegar sempre demasiado cedo ou demasiado tarde às festas. Como não estava sozinho, e para gerir as expectativas de quem estava comigo, acabei por me ficar por essas experiências: a preparação, a antecipação da festa, e o desmascarar, o desmontar do mito. Nunca experimentei, de facto, o momento em que o mito está diante de nós. Esse momento em que o fogo arde e os mascarados estão no auge da sua transformação.

Os acasos ensinam-nos o caminho. O telefone do vento foi construído por Itaro Sasaki, no seu quintal.

Tanto quanto pude apurar, por causa da morte de um primo. Itaro Sasaki montou esta cabine telefónica como coisa íntima. Está desligada da rede, e era usada para falar com o primo. Falar para o primo. No tsunami de 2011, um terço da população da cidade onde Itaro Sasaki montou a sua cabine morreu ou desapareceu. Alguns dos sobreviventes voltaram-se para este jardim, esta cabine, por si só uma imagem extraordinária que coloca a esperança e a natureza num diálogo poético.

As pessoas iam falar na cabine para contar aos seus desaparecidos como sentiam a sua falta, para lhes pedir que voltassem, para perguntar porque tinham sido eles a desaparecer. Contam-lhes novidades da vida. Sabem que a cabine não está ligada a nada. Uma das pessoas sugere que talvez por isso vão lá: não estando ligada a nada, a cabine não está desligada, está ligada ao que não vemos, livre de tudo o que é mundano e do dia-a-dia. De tudo o que nos limita a percepção do mundo. Aqui está um pequeno milagre, sem sensacionalismos. É a mesma experiência que em Vinhais me descrevem sobre usar uma máscara nas festas de inverno: o sentimento de uma grande liberdade. De que se pode o impossível.

Tudo isto me levou a encontrar mais sentido na invenção do telefone do vento do que na peregrinação ao telefone do vento. Na invenção das festas de inverno, das máscaras, das fogueiras, das canções, dos rituais. Na invenção, em vez da recriação, que todos os anos se repete. Esse ponto de franqueza e ingenuidade, de suspensão da descrença no poder de certas coisas e relações com a natureza. Na entrega que fazemos à expectativa de que um pequeno milagre aconteça durante a noite. Sobre tudo isto, tive longas conversas com o professor Roberto Afonso, em Vinhais, com o Vitor e o Tozé, construtores de máscaras em Bragança.

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E seguiu-se uma outra conversa importante, já em Lisboa, com o professor Francisco Oneto, do Departamento de Antropologia do ISCTE. Falámos durante mais de uma hora sobre a relação dos nossos antepassados com a invenção do luto. Nesta altura, começava a surgir um nome para o espectáculo, que ganhou o seu sentido na conversa com o professor. Solstício de Inverno, um dia inevitável na relação do ser humano com a morte. Uma intuição sobre como a expectativa do pequeno milagre talvez nos acompanhe há muito tempo. Um dia que nos oferece máscaras e fogueiras, rituais e arquitectura pré-histórica alinhada com a natureza para fazer sentido nesta altura do ano. Um dia transversal às idades. Talvez por ser um dia que materializa a expectativa: a partir deste dia, as noites serão cada vez mais curtas, os dias cada vez mais longos. A partir deste dia, a luz começa a vencer sobre a sombra. A partir deste dia, começamos a queimar menos fogueiras e a ter durante mais tempo a companhia do sol. E por isso, cada cabine telefónica que se constrói, cada altar, cada monumento, cada resistência, cada luto que se inventa, para pessoas, sociedades, ou outras coisas, é um solstício de inverno: a esperança de que as noites fiquem cada vez menores, de que o sol possa brilhar um pouco mais. 

Estamos no início de 2023 e chegámos ao princípio do espectáculo que vamos criar.»

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«Mar na praia da Assenta (São Pedro da Cadeira) inspirou o que imagino ser o contexto da personagem principal - que por si só me foi oferecida por uma conversa com um pescador da Assenta, o João Russo - que sabe como estará o tempo só pela observação de praticamente tudo o que existe na natureza: as nuvens, os peixes, os insectos.»
O Teatro da Cidade foi fundado, em 2015, por Bernardo Souto, Guilherme Gomes, João Reixa, Nídia Roque e Rita Cabaço. Estreou o seu primeiro espetáculo, Os Justos de Albert Camus, em 2016, no Teatro do Bairro Alto, com o apoio do Teatro da Cornucópia. Foca-se na importância do texto para a criação de espetáculos, usando o repertório dramatúrgico mundial.

«Maio em Candoso, Guimarães. Eu, Leonor e Leonardo, numa residência artística que o Teatro Oficina nos permitiu. Tenho trinta anos, acabados de fazer. Também eu estou em relação estreita com os ciclos da minha vida, com as minhas idades. Durante duas semanas, vemos filmes: O Bobo, do José Álvaro Morais; passamos os olhos por Fellini (8 ½), por Tati (a Leonor sugere vermos o Parade). Ouvimos música, o Leonardo apresenta-nos Everywhere at the End of Time. Lemos, caminhamos, escrevemos. Durante esta residência, recebo a notícia de que assumirei em breve a direcção artística do Teatro-Cine de Torres Vedras, uma experiência que não podia adivinhar de que formas influenciaria o trabalho para este espectáculo. 

 

É aqui que encontramos o descampado onde intuía que o espectáculo se passava. É aqui que encontramos relações e uma banda que mais tarde havia de reconhecer em Torres Vedras. É aqui que recebemos uma fita branca que foi usada para decorar as ruas de Candoso para a procissão. É aqui que o Leonardo encontra a música do espectáculo. Esta residência artística concentrou e concretizou tudo o que fui colhendo no último ano. Descobrimos-lhe um conflito. E uma espécie de tom. Criámos expectativas sobre o elenco, e traçámos objectivos mais concretos. Escrevi algumas partes do que seria o texto. E deixei que se instalasse o sonho ou a expectativa do pequeno milagre.

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Este espectáculo aparece entre a vida, como se a vida fosse uma coisa porosa, de onde foi transpirando este texto, as pessoas que neste espectáculo trabalham, a sua forma. Nos meses seguintes, fui colhendo pequenas peças do espectáculo: escrevi, pesquisei, falei com o elenco, continuei na busca de financiamento com a incansável ajuda da Maria João Garcia - a pessoa com quem partilhei a maior parte das dores e frustrações da criação deste projecto. A Maria João foi, ao longo destes anos, ao mesmo tempo catalisadora e amparo. Nem sempre foi evidente que o espectáculo aconteceria. E foi muitas vezes das conversas com a Maria João que se renovou o entusiasmo. Fazer um espectáculo é duro. Não está alheio a uma grande dose de dor e desespero. Mas tudo isso ia perdendo o seu peso à medida que o tempo avançava e se começava a criar um grupo de trabalho: a Nídia, a Ângela, o Bernardo e o Rui, companheiros de sempre, a Sofia e o Diogo, que tanto admiro e por quem sou acolhido, o Ricardo e o Nylon que se juntaram mais recentemente a esta constelação de companheiros e com quem sinto uma cumplicidade tão grande que julgaria que os conheço há muito tempo. Estas pessoas somaram-se à Leonor, à Maria João e ao Leonardo. A esperar em conjunto, também nós criámos uma expectativa sobre um pequeno milagre a que chamei Solstício de Inverno.»

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Reportagem sobre o Telefone do Vento.

Os poucos recursos que temos para criar o espectáculo inspiraram uma nova forma de organizarmos o trabalho. Começámos a ter encontros no final de 2023. No início de 2024, a par de uma agenda extremamente exigente, continuámos a dialogar e a cultivar o nosso imaginário. Em Abril, escrevi a primeira forma do texto do início ao fim. Fui surpreendido pelo aparecimento de um pescador de Torres Vedras no texto que escrevi. Deixo que ele apareça e que ganhe sentido no espectáculo. Encontrei-lhe uma primeira forma que experimentámos nas primeiras duas semanas de Maio, já na Culturgest. A Ângela disse-me que ainda faltava a cambalhota, como se espera de um feto. No segundo fim-de-semana de Maio, participo num encontro de dramaturgos europeus em Mainz. Trabalho sobre o texto com eles. Lemos partes do que escrevi. Sou convidado a pensar sobre o lado sombrio do texto. Na viagem de regresso, escrevo muito no avião.

No final de Maio acho que acabei o texto. Estou contente. Experimentamos em Junho, na Escola do Largo. Fazemos ajustes, reescrevo partes. A Ângela traz uma proposta de cenografia, no final destes dias. Apaixono-me por aquilo que ela traz. O Rui levanta questões práticas que me iluminam ideias de encenação. O imaginário é cada vez mais concreto. 

Depois de algumas desilusões, encontramos finalmente a banda filarmónica que nos vai acompanhar, a Sociedade Filarmónica União e Capricho Olivalense. Apesar do entusiasmo dos responsáveis. A banda não está completamente mobilizada. Vou uns dias a Avignon, onde começo a escrever uma versão do texto com apontamentos de encenação. Quando regresso, vou directo à sede da banda, para assistir a um ensaio. Propus ao Jorge Ribeiro, que é o meu contacto com a banda, que talvez lhes pudesse falar do espectáculo. A meio do ensaio pedem-me para ir para o lugar do maestro, e é aí que partilho com o grupo o que sei e o que sonho sobre o Solstício de Inverno

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Uns dias depois, articulamos com eles e o Leonardo grava a banda sonora no espaço. Temos elementos interessados em integrar o espectáculo. Agora, sei que não conseguimos mais um dos apoios a que concorremos. Mas agora nada disto me abate. O que temos em mãos é maior do que a circunstância. Embrulhados na noite que tudo cobre por estes dias, precisamos de um Solstício de Inverno. E este, que esta equipa alimenta e segura, é um ponto de esperança não só por aquilo que representamos em palco, mas principalmente pela forma como nos mantemos juntos nesta circunstância. Falo com a equipa sobre isto, e recebo de todos uma palavra de apoio e cumplicidade. Sinto o que senti quando assisto à gravação da banda sonora, numa noite de semana que se prolonga e que conseguiu reunir um grupo grande de pessoas na sede da banda filarmónica para, sem qualquer obrigação de o fazer, por solidariedade, paixão ou outra coisa qualquer, contribuir para este espectáculo.

Num intervalo, ouço uma entrevista da Maria João Pires e lembro-me da personagem da Sofia. Leio um poema de José Gomes Ferreira, e integro-o o espectáculo.

Em agosto, fazemos uma sessão fotográfica no farol de Cabo Raso. A última experiência antes da recta final de ensaios. E é como se estivéssemos no lugar da acção. Neste dia tive a certeza de que o espectáculo funcionará. Assistir às relações entre as diferentes pessoas confirmou tudo. E as fotografias que resultaram da sessão parecem autênticos quadros.

A Nídia, que também está a fazer os figurinos, a primeira vez que assina figurinos num espectáculo com este grau de autonomia, partilha comigo por fotografias o que vai fazendo. O seu entusiasmo tira-lhe os constrangimentos, e a Nídia sente que é capaz do impossível, como os mascarados de Vinhais. No culminar deste processo, também eu acredito. E a verdade é que se surpreende a cada dia. 

Agora, enquanto escrevo estas palavras, antecipo o início dos trabalhos. Terei uma reunião com a Maria João e o Ricardo, falei com o Leonardo sobre apontamentos que já fui fazendo, leio o texto e escrevo a lápis o que intuo. Segunda-feira começamos os ensaios que vão passar num instante. Mas o espectáculo já é um companheiro nosso. Ele já anda por aqui. O grande trabalho, agora, é, depois de deixar que o mundo o informe, libertar o espectáculo da rede. Tirar-lhe tudo o que é superficial, e que ainda está nele. Deixar apenas o essencial. O que é eterno. A arquitectura em diálogo com a natureza, os veios da madeira que ensinam o artesão a descobrir a forma da máscara, as nossas dores e paixões verdadeiras que dão corpo ao espectáculo. Deixar, de tudo o que vamos colhendo, só aquilo que é verdadeiro. Para, no final, chamarmos a isto que tem acontecido ao longo dos últimos dois anos e que culmina numa estreia na Culturgest, para depois seguir caminho por outras salas, o nosso pequeno milagre.

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FICHA TÉCNICA

FOTOGRAFIA
Beatriz Pequeno, Guilherme Gomes

TEXTO
Guilherme Gomes

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina

EDIÇÃO
Carolina Luz

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo