UM MERGULHO NA QUINTA DO PISÃO

"Quando nos entregamos aos lugares, eles devolvem-nos a nós próprios; quanto mais os conhecemos, mais espalhamos neles as sementes de uma cultura invisível de memórias e associações que estarão à nossa espera quando regressarmos, enquanto novos lugares oferecem novos pensamentos e novas possibilidades. Explorar o mundo é uma das melhores formas de explorar a mente e caminhar atravessa ambos os terrenos."
 

Rebecca Solnit, Wanderlust, a History of Walking

Situada no extremo oriental do concelho de Cascais e integrada no Parque Natural Sintra-Cascais, a Quinta do Pisão é hoje na quase totalidade um parque-natureza aberto ao público, restando uma pequena área a sul ocupada pelo Centro de Apoio Social do Pisão. 

A propósito da conferência O que pode um lugar? Joana Braga conta-nos em discurso direto o seu encontro com a Quinta do Pisão.

© Joana Braga
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JOANA BRAGA EM DISCURSO DIRETO

 

Encontro primeiro com a matéria tangível que constitui a Quinta do Pisão: com a sua topografia, com o solo feito de terra onde afloram rochas, sobretudo calcários, alguns granitos a norte, e cristas de calcoxistos (pedra que não conhecia até agora). Percorrer os caminhos e trilhos que estruturam este lugar, as poucas construções que o pontuam, o encontro com os viventes não humanos que o habitam: as formas de vida vegetal que o povoam e moldam, os animais para quem este lugar é casa, habitat, outros que apenas por ali passam. Caminhar sem rumo planeado, perder as horas, as referências espaciais, demorar-me, afinar o corpo com o lugar. 
Talvez o encantamento com o que nos rodeia, a escuta do que está próximo e ainda assim é desconhecido, possa ser o princípio de um mergulho no mundo que forçosamente nos liga a todas as formas de existência, viventes e não viventes, que connosco compõem o mundo.
© Raquel Montez.© Raquel Montez.
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O movimento do corpo no acto de caminhar, ao propor uma recriação da atenção e o seu entrelaçamento com os pormenores sensíveis do meio que percorremos, ou melhor, do meio em que estamos imersas, torna-se modo de pesquisa do lugar. 
A experiência corporizada da caminhada também convoca a interrogação arqueológica, permitindo desvelar, na matéria tangível de cada lugar, indícios de configurações, temporalidades e modos de vida erodidos, ou a revelação de fracturas e tensões que o atravessam. 
Contudo, este mergulho na Quinta do Pisão, talvez por me faltarem referências incorporadas, parecia não me permitir escutar os estratos latentes. Era necessário escavar o que não está imediatamente visível para poder escutar a sedimentação das camadas temporais que constituem a sua história. 

O QUE FAZ UM LUGAR?

Procurei compreender o quotidiano de algumas pessoas que cuidam diariamente deste lugar. Acompanhei as jornadas de trabalho dos «rangers» da quinta, ensaiei a escuta dos estratos escondidos nas memórias de quem aqui trabalhou antes; conversei com as pessoas que coordenam o Centro de Apoio Social do Pisão, com as que lá trabalharam antes, com alguns dos seus residentes actuais e com quem lá esteve internado há cerca de 71 anos, quando esta quinta era a Colónia Agrícola do Pisão, dependência do Albergue da Mendicidade de Lisboa. 
© DR.
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Primeira visita ao Centro de Apoio Social do Pisão para uma conversa com a Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, Isabel Miguéns de Almeida Bouças e com a directora do Centro, Anabela Gomes.
As palavras que escutei contam uma história de violência terrível inscrita neste lugar: pessoas enclausuradas em condições miseráveis, pessoas que trabalharam os campos da quinta sob a ameaça das espingardas dos polícias que as vigiavam, pessoas referenciadas com problemas de saúde mental encerradas num pavilhão isolado sem qualquer tipo de cuidado ou tratamento e que «levavam tanta pancada», pessoas que passaram fome.
Foram estas pessoas que delinearam parte dos caminhos que percorri, que cultivaram as zonas que hoje são pastagens, que construíram parte do seu edificado. Quando estou perante estes pastos ondulantes, onde agora passeiam os cavalos, não consigo já deixar de ver a imagem dos doze homens com enxadas na mão, costas curvadas, sob o olhar atento do polícia, tal qual a fotografia dos anos 1940 que me foi mostrada. 

O que é um lugar?

Locus de uma constelação de diferentes trajectórias, humanas e não humanas — interligando-se, contaminando-se, interferindo umas com as outras, colaborando ou confrontando-se — em constante reconfiguração, trajectórias articuladas no seio de um universo espacial alargado e marcado por forças diferenciadas. A sua singularidade advém do modo distinto como estas trajectórias se interligam aqui, neste particular locus e do modo como a constelação que hoje constituem assenta sobre anteriores constelações de interligações, estrato sobre estrato, justapondo-se, comprimindo-se, entrecruzando-se e mesmo rasurando-se, permanecendo no agora traços mais ou menos visíveis de constelações de outrora. 
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Sobre Joana Braga

Joana Braga é arquitecta, investigadora e artista interdisciplinar. O seu trabalho, geralmente desenvolvido em processos colaborativos, e assumindo diversas formas, articula práticas espaciais, discursivas, visuais e performativas para interrogar e desdobrar a experiência estética do espaço e também as suas dimensões culturais, políticas e sociais. Tem experimentado formatos de pesquisa que articulam a vivência corporizada do território com a recolha e reconfiguração de memórias, vestígios e questões que o atravessam, para problematizar lugares e territórios específicos, bem como os discursos, objetos e práticas que os desdobram. Tem explorado a caminhada como prática experimental e artística para repensar criticamente o espaço habitado e a relação que com ele estabelecemos. A sua atividade tem sido multifacetada, compreendendo a prática artística, a investigação, a curadoria e a escrita. 

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FICHA TÉCNICA

FOTOGRAFIA
Joana Braga, Raquel Montez

VÍDEO, TEXTO, ÁUDIO
Joana Braga

EDIÇÃO DE CONTEÚDOS
Joana Braga, Sara Morais

EDIÇÃO
Carolina Luz

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo

PERFORMING LANDSCAPE COFINANCIADO PELO PROGRAMA EUROPA CRIATIVA DA UNIÃO EUROPEIA

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